Resumo - Paulo
Freire – CONSCIENTIZAÇÃO
Teoria e Prática da Libertação
Como diretor do Departamento de Educação e de Cultura do SESI, em Pernambuco, e depois na Superintendência, de 1946 a 1954, fiz as primeiras experiências que me conduziram mais tarde ao método que iniciei em 1961. Isto teve lugar no movimento de Cultura Popular do Recife, um de cujos fundadores fui, e que mais tarde teve continuidade no Serviço de Extensão Cultural da Universidade do Recife; coube-me ser seu primeiro diretor.
O golpe de Estado (1964) não só deteve todo este esforço que fizemos no campo da educação de adultos e da cultura popular, mas também levou-me à prisão por cerca de cerca de 70 dias (com muitos outros, comprometidos no mesmo esforço). Fui submetido durante quatro dias a interrogatórios, que continuaram depois no IPM do Rio. Livrei-me, refugiando-me na Embaixada da Bolívia em setembro de 1964. Na maior parte dos interrogatórios a que fui submetido, o que se queria provar, além de minha “ignorância absoluta” (como se houvesse uma ignorância ou sabedoria absolutas; esta não existe senão em Deus), o que se queria provar, repito, era o perigo que eu representava.
Fui considerado como um “subversivo internacional”, um “traidor de Cristo e do povo brasileiro”, "Nega o senhor – perguntava um dos juízes – que seu método é semelhante ao de Stalin, Hitler, Perón e Mussolini? Nega o senhor que com seu pretendido método o que quer é tornar bolchevique o país?...”
O que aparecia muito claramente em toda esta experiência, de que saí sem ódio nem desesperação, era que uma onda ameaçadora de irracionalismo se estendia sobre nós: forma ou distorção patológica da consciência ingênua, perigosa ao extremo por causa da falta de amor que a alimenta, por causa da mística que a anima1.
Seu movimento começou em 1962 no Nordeste, a região mais pobre do Brasil – 15 milhões de analfabetos sobre 25 milhões de habitantes. Neste momento, a "Aliança para o Progresso”, que fazia da miséria do Nordeste seu “leitmotiv” no Brasil, interessou-se pela experiência realizada na cidade de Angicos, Rio Grande do Norte (interesse que teve seu fim pouco tempo depois da própria experiência).
Os resultados obtidos – 300 trabalhadores alfabetizados em 45 dias – impressionaram profundamente a opinião pública. Decidiu-se aplicar o método em todo o território nacional, mas desta vez com o apoio do Governo Federal.
De acordo com a pedagogia da liberdade, preparar para a democracia não pode significar somente converter o analfabeto em eleitor, condicionando-o às alternativas de um esquema de poder já existente. Uma educação deve preparar, ao mesmo tempo, para um juízo crítico das alternativas propostas pela elite, e dar a possibilidade de escolher o próprio caminho.
Os políticos populistas não compreendem as relações entre alfabetização e “conscientização”. Obsecados por um único resultado – o aumento do número de eleitores –, deram somente um apoio muito escasso, do ponto de vista político, a esta forma de mobilização.
Na realidade, raciocinavam de maneira muito simplista ante o problema. Se um educador de fama oferece a possibilidade de alfabetizar em muito pouco tempo o conjunto do povo brasileiro, ideal este desejado durante décadas por todos os governos, por que não dar-lhe o apoio do Estado? Por isso não compreenderam a agitação criada ao redor da pedagogia de Paulo Freire pelos grupos de direita. Os políticos viram o Movimento de Educação Popular como qualquer outra forma de mobilização de massas: em função de suas preocupações eleitorais; e propuseram uma revolução verbal e abstrata, aí onde era necessário prosseguir a reforma prática em curso.
O método de Paulo Freire é utilizado em todos os programas oficiais de alfabetização do Chile.
Como o presidente Frei assinalou num discurso sobre o estado da nação, sua administração queria “aumentar a participação popular no desenvolvimento de toda a comunidade. Não somente nas políticas dos partidos... mas, sobretudo, nas expressões reais de nossa vida atual: o trabalho, a vida local e regional, as necessidades da família, a cultura de base e a organização econômica-social”.
O problema converteu-se, naquele momento, em tornar aceito no Chile um método considerado subversivo no Brasil.
O Escritório de Planejamento para a Educação de Adultos, como o seu próprio nome indica, não se ocupa somente da alfabetização, mas também do conjunto de programas que tem por finalidade permitir àqueles que não receberam educação superar esta inferioridade. Recentemente o Escritório incentivou os analfabetos, graças ao método de Paulo Freire, a continuar seus estudos em um curso superior.
ALFABETIZAÇÃO E CONSCIENTIZAÇAO
Acredita-se geralmente que sou autor deste estranho vocábulo “conscientização” por ser este o conceito central de minhas idéias sobre a educação. Na realidade, foi criado por uma equipe de professores do INSTITUTO SUPERIOR DE ESTUDOS BRASILEIROS por volta de 1964. Pode-se citar entre eles o filósofo Álvaro Pinto e o professor Guerreiro. Ao ouvir pela primeira vez a palavra conscientização, percebi imediatamente a profundidade de seu significado, porque estou absolutamente convencido de que a educação, como prática da liberdade, é um ato de conhecimento, uma aproximação crítica da realidade.
Desde então, esta palavra, conscientização, forma parte de meu vocabulário. Mas foi Hélder Câmara quem se encarregou de difundi-la e traduzi-la para o inglês e para o francês.
Conscientização é um compromisso histórico. É também consciência histórica: é inserção crítica na história, implica que os homens assumam o papel de sujeitos que fazem e refazem o mundo. Exige que os homens criem sua existência com um material que a vida lhes oferece...4
A conscientização não está baseada sobre a consciência, de um lado, e o mundo, de outro; por outra parte, não pretende uma separação. Ao contrário, está baseada na relação consciência – mundo.
o processo de alfabetização política – como o processo lingüístico – pode ser uma prática para a “domesticação dos homens”, ou uma prática para sua libertação. No primeiro caso, a prática da conscientização não é possível em absoluto, enquanto no segundo caso o processo é, em si mesmo, conscientização. Daí uma ação desumanizante, de um lado, e um esforço de humanização, de outro.5
No nosso método, a codificação, a princípio, toma a forma de uma fotografia ou de um desenho que representa uma situação existencial real ou uma situação existencial construída pelos alunos. Quando se projeta esta representação, os alunos fazem uma operação que se encontra na base do ato de conhecimento; se distanciam do objeto cognoscível. Desta maneira os educadores fazem a experiência da distanciação, de forma que educadores e alunos possam refletir juntos, de modo crítico, sobre o objeto que os mediatiza. O fim da descodificação é chegar a um nível crítico de conhecimento, começando pela experiência que o aluno tem de sua situação em seu “contexto real”.
Para ser válida, toda educação, toda ação educativa deve necessariamente estar precedida de uma reflexão sobre o homem e de uma análise do meio de vida concreto do homem concreto a quem queremos educar (ou melhor dito: a quem queremos ajudar a educar-se).
Faltando uma tal reflexão sobre o homem, corre-se o risco de adorar métodos educativos e maneiras de atuar que reduzem o homem à condição de objeto.
Assim, a vocação do homem é a de ser sujeito e não objeto. Pela ausência de uma análise do meio cultural, corre-se o perigo de realizar uma educação pré-fabricada, portanto, inoperante, que não está adaptada ao homem concreto a que se destina.
Por outra parte, não existem senão homens concretos (“não existe homem no vazio”). Cada homem está situado no espaço e no tempo, no sentido em que vive numa época precisa, num lugar preciso, num contexto social e cultural preciso. O homem é um ser de raízes espaço-temporais.
Para ser válida, a educação deve considerar a vocação ontológica do homem – vocação de ser sujeito – e as condições em que ele vive: em tal lugar exato, em tal momento, em tal contexto.
Mais exatamente, para ser instrumento válido, a educação deve ajudar o homem, a partir de tudo o que constitui sua vida, a chegar a ser sujeito. E isto o que expressam frases como: “A educação não é um instrumento válido se não estabelece uma relação dialética com o contexto da sociedade ao qual o homem está radicado.”
O homem chega a ser sujeito por uma reflexão sobre sua situação, sobre seu ambiente concreto.
Quanto mais refletir sobre a realidade, sobre sua situação concreta, mais emerge, plenamente consciente, comprometido, pronto a intervir na realidade para mudá-la.
Através destas relações é que o homem chega a ser sujeito. O homem, pondo em prática sua capacidade de discernir, descobre-se frente a esta realidade que não lhe é somente exterior (... não pode, por outro lado, ter relações mais que com algo ou alguém exterior a si mesmo, nunca consigo mesmo), mas que o desafia, o provoca. As relações do homem com a realidade, com seu contexto de vida – trata-se da realidade social ou do mundo das coisas da natureza – são relações de afrontamento: a natureza se opõe ao homem; ele se defronta continuamente com ela; as relações do homem com os outros homens, com as estruturas sociais são também de choque, na medida em que, continuamente, o homem nas suas relações humanas se sente tentado a reduzir os outros homens à condição de objeto, coisas que são utilizadas para o proveito próprio.
O importante é advertir que a resposta que o homem dá um desafio não muda só a realidade com a qual se confronta: a resposta muda o próprio homem, cada vez um pouco mais, e sempre de modo diferente. “Pelo jogo constante destas respostas o homem se transforma no ato mesmo de responder”, diz Paulo Freire.
Na medida em que o homem, integrando-se nas condições de seu contexto de vida, reflete sobre elas e leva respostas aos desafios que se lhe apresentam, cria cultura.
A partir das relações que estabelece com seu mundo, o homem, criando, recriando, decidindo, dinamiza este mundo. Contribui com algo do qual ele é autor... Por este fato cria cultura.
Neste sentido, é lícito dizer que o homem se cultiva e cria a cultura no ato de estabelecer relações, no ato de responder aos desafios que lhe apresenta a natureza, como também, ao mesmo tempo, de criticar, de incorporar a seu próprio ser e de traduzir por uma ação criadora a aquisição da experiência humana feita pelos homens que o rodeiam ou que o precederam.
Não só por suas relações e por suas respostas o homem é criador de cultura, ele é também “fazedor” da história. Na medida em que o ser humano cria e decide, as épocas vão se formando e reformando.
O homem não pode participar ativamente na história, na sociedade, na transformação da realidade, se não é auxiliado a tomar consciência da realidade e de sua própria capacidade para transformá-la.
A realidade não pode ser modificada, senão quando o homem descobre que é modificável e que ele pode fazê-lo.
É preciso, portanto, fazer desta conscientização o primeiro objetivo de toda educação: antes de tudo provocar uma atitude crítica, de reflexão, que comprometa a ação.10
Método
Contradizendo os métodos de alfabetização puramente mecânicos, projetávamos levar a termo um.a alfabetização direta, ligada realmente à democratização da cultura e que servisse de introdução; ou, melhor dizendo, uma experiência susceptível de tornar compatíveis sua existência de trabalhador e o material que lhe era oferecido para aprendizagem. Verdadeiramente, só uma paciência muito grande é capaz de suportar, depois das dificuldades de uma jornada de trabalho, as lições que citam a “asa”: “Pedro viu a asa”; “A asa é do pássaro”; ou as que falam de “Eva e as uvas” a homens que, com freqüência, sabem pouquíssimo sobre Eva e jamais comeram uvas.
Daí, nossa descrença inicial em relação aos abecedários que pretendem oferecer a montagem dos signos gráficos, reduzindo o analfabeto ao estado de objeto e não de sujeito de sua própria alfabetização. Tínhamos, por outro lado, que pensar em limitar o número de palavras, fundamentais, chamadas geradoras, na aprendizagem de uma língua silábica como a nossa.
Não tínhamos necessidade de 40, 50, 80 palavras geradoras, para permitir a compreensão das sílabas de base da língua portuguesa. Seria uma perda de tempo. 15 ou 18 nos pareceram suficientes para o processo de alfabetização pela conscientização.
Fases de Elaboração e Aplicação do Método
Primeira fase: a "descoberta do universo vocabular” dos grupos com os quais se há de trabalhar se efetua no curso de encontros informais com os habitantes do setor que se procura atingir. Não só se retêm as palavras mais carregadas de sentido existencial – e, por causa disto, as de maior conteúdo emocional –, senão também as ex-pressões típicas do povo: formas de falar particulares, palavras ligadas à experiência do grupo, especialmente à experiência profissional.
“Janeiro em Angicos – disse um homem do sertão do Rio Grande do Norte – é muito duro de se viver, porque janeiro é cabra danado parti judiar de nós.”
As palavras geradoras devem nascer desta procura e não de uma seleção que efetuamos no nosso gabinete de trabalho, por mais perfeita que ela seja do ponto de vista técnico.
Segunda fase: Seleção de palavras, dentro do universo vocabular.
Esta seleção deve ser submetida aos seguintes critérios:
a) O da riqueza silábica;
b) O das dificuldades fonéticas. As palavras escolhidas devem responder às dificuldades fonéticas da língua e colocar-se na ordem de dificuldade crescente;
c) O do conteúdo prático da palavra, o que implica procurar o maior compromisso possível da palavra numa realidade de fato, social, cultural, política...
Hoje, conforme o professor Jarbas Maciel, vemos que estes critérios estão contidos no critério semiológico: a melhor palavra geradora é aquela que reúne em si a porcentagem mais alta de critérios sintáticos (possibilidade ou riqueza fonética, grau de dificuldade fonética complexa, possibilidade de manipulação de conjuntos de signos, de sílabas etc.), semânticos (maior ou menor intensidade de relação entre a palavra e o ser que designa), poder de conscientização que a palavra tem potencialmente, ou conjunto de reações sócio-culturais que a palavra gera na pessoa ou no grupo que a utiliza.
Terceira fase: A terceira fase é a criação de situações existenciais típicas do grupo com o qual se trabalha.
Estas situações desempenham o papel de “desafios” apresentados aos grupos. Trata-se de situações problemáticas, codificadas, que levam em si elementos para que sejam descodificados pelos grupos com a colaboração do coordenador. O debate a este propósito – como o que se leva a termo com as situações que nos proporcionam o conceito antropológico da cultura – conduzirá os grupos a “conscientizar-se” para alfabetizar-se.
Estas são as situações locais que abrem perspectivas para a análise de problemas nacionais e regionais. Entre estas perspectivas se situam as palavras geradoras, ordenadas conforme o grau de suas dificuldades fonéticas. Uma palavra geradora pode englobar a situação completa ou referir-se somente a um dos elementos da situação.
Quarta fase: A quarta fase é de elaboração de fichas indicadoras que ajudam os coordenadores do debate em seu trabalho. Tais fichas deverão simplesmente ajudar os coordenadores, não serão uma prescrição rígida e imperativa.
Quinta fase: Consiste na elaboração de fichas nas quais aparecem as famílias fonéticas correspondentes às palavras geradoras.
Uma vez elaborado o material, em forma de diapositivos ou cartazes, constituídas as equipes de supervisores e de coordenadores, devidamente treinados nos debates relativos às situações já elaboradas, e de posse de suas fichas indicadoras, começa o trabalho efetivo de alfabetização.
Os Atos Concretos da Alfabetização
Uma vez projetada a situação, com a indicação da primeira palavra geradora, ou melhor, depois de representar graficamente a expressão oral da percepção do objeto, abre-se o debate.
Quando o grupo, com a colaboração do coordenador, esgotou a análise – processo de descodificação – da situação dada, o educador propõe a visualização da palavra geradora, e não a memorização. Quando se visualiza a palavra e se estabelece o laço semântico entre ela e o objeto a que se refere – representado na situação –, mostra-se ao aluno, por meio de outro diapositivo, a palavra sozinha, sem o objeto correspondente.
Imediatamente depois apresenta-se a mesma palavra separada em sílabas, que o analfabeto, geralmente, identifica como partes. Reconhecidas as partes, na etapa da análise, passa-se à visualização das famílias silábicas que compõem as palavras em estudo.
Estas palavras, estudadas primeiro de forma isolada, são examinadas depois em seu conjunto, o que conduz à identificação das vogais. A ficha, que apresenta as famílias em seu conjunto, foi qualificada pela professora Aurenice Cardoso de “ficha de descoberta”, porque, ao sintetizar por meio dela, o homem descobre o mecanismo de formação das palavras de uma língua silábica como o português, que repousa sobre combinações fonéticas.
Assumindo este mecanismo de maneira crítica e não pela memorização – o que não seria uma apropriação –, o analfabeto começa a estabelecer por si mesmo seu sistema de sinais gráficos.
Desde o primeiro dia, se põe com grande facilidade a criar palavras com as combinações fonéticas postas à sua disposição, graças à separação de uma palavra com três sílabas.
Tornemos a palavra “tijolo” como primeira palavra geradora na “situação” de uma obra em construção. Depois do debate da situação sob todos os aspectos possíveis, estabelece-se a relação semântica entre as palavras e o objeto representado por ela.
A palavra visualizada na situação apresenta-se imediatamente depois sem o objeto. Logo, em sílabas: “tijo-lo”.
A visualização das partes segue o reconhecimento das famílias fonéticas.
A partir da sílaba “ti”, conduz-se o grupo a reconhecer toda a família fonética que resulta da combinação
da consoante inicial com as outras vogais. Depois, o grupo, ao descobrir a segunda família pela visualização de “jo”, chega finalmente ao reconhecimento da terceira. Quando se projeta a família fonética, o grupo reconhece somente a sílaba da palavra visualizada: ta-te-ti-to-tu, ja-je-ji-jo-ju, la-le-li-la-lu.
Tendo reconhecido a sílaba “ti”, da palavra geradora “tijolo”, o grupo compara estas sílabas com outras, o que leva a descobrir que, se é verdade que começam da mesma maneira, no entanto, não podem chamar-se todas “ti”.
O processo é idêntico para as sílabas “jo” e “la” e suas famílias. Uma vez feito o reconhecimento de cada família fonética, os exercícios de leitura fixam as sílabas novas.
Abordamos neste momento o estágio decisivo, o da apresentação simultânea das três famílias na ficha de descobrimento.
ta-te-ti-to-tu
ja-je-ji-jo-ju
la-le-li-lo-lu
Depois de uma leitura horizontal e uma vertical, co-meça a síntese oral. Um a um, todos criam palavras com as combinações possíveis: luta, lajota, jato, juta, lote, tela etc. Alguns, utilizando a, vogal de uma das sílabas, unindo-a a outra e acrescentando uma consoante, formam uma palavra. Outros, como um analfabeto de Brasília, que comoveu a assistência e nela o antigo Ministro de Educação, Paulo de Tarso, a quem o interesse pela educação levava, ao fim de seu dia de trabalho, a assistir aos debates dos Círculos de Cultura, compôs uma frase “tu ja le”, que em bom português seria: “tu já lês”. E isto na primeira tarde de sua alfabetização.
Da Leitura à Escrita
Uma vez terminados os exercícios orais, através dos quais se produz são somente o conhecimento mas também o reconhecimento, sem o qual não há verdadeiro aprendizado, o aluno passa à escrita, e isto desde o primeiro dia. Na tarde seguinte, leva ao círculo, como “tarefa”, todas as palavras que pôde criar pela combinação de fonemas comuns. O que importa, no dia em que põe o pé neste terreno novo, é a descoberta do mecanismo das combinações fonêmicas.
Na experiência realizada no Estado do Rio Grande do Norte, chamou-se “palavras de pensamento” aquelas que tinham significado e “palavras mortas” as que não o tinham. Foram numerosos os que, depois da assimilação do mecanismo fonético e graças à ficha de descoberta, conseguiram escrever as palavras partindo de fonemas complicados que o coordenador ainda não lhes havia apresentado.
Num dos Círculos de Cultura da experiência de Angicos (Rio Grande do Norte), coordenado por minha filha Magdalena, no quinto dia do debate, quando ainda não se retinham senão fonemas simples, um dos participantes foi ao quadro-negro para escrever – disse ele – uma palavra de pensamento. Escreveu: “O povo vai resouver (por resolver) os poblemas (por problemas) do Brasil votando conciente (por consciente).”
Acrescentamos que, nestes casos, os textos eram discutidos em grupos, estudando o seu significado em relação à nossa realidade.
Como explicar que um homem, uns dias antes analfabeto, escreva palavras partindo de fonemas complexos que ainda não estudou? Deve-se a que, havendo dominado o mecanismo das combinações fonéticas, intenta e consegue expressar-se graficamente da maneira como fala. Isto verifica-se em todas as experiências que se realizaram no país, e se estendeu e aprofundou através do Programa Nacional de Alfabetização do Ministério de Educação e Cultura, que coordenávamos naquela época e que desapareceu depois do golpe militar.
Para que a alfabetização não seja puramente mecânica e assunto só de memória, é preciso conduzir os adultos a conscientizar-se primeiro, para que logo se alfabetizem a si mesmos. Conseqüentemente, este método – na medida em que ajuda o homem a aprofundar a consciência de sua problemática e de sua condição de pessoa e, portanto, de sujeito – converte-se para ele em caminho de opção. Neste momento, o homem se politizará a si mesmo.
Quando um ex-analfabeto do município de Angicos, pronunciando um discurso para o presidente Goulart – que sempre nos apoiou com entusiasmo –, declarou que ele não era mais massa e sim povo, fez mais que uma simples frase: afirmou-se a si mesmo, consciente de uma opção. Havia escolhido a participação na decisão, que só o povo possui, e havia renunciado à dimensão emocional das massas. Havia se politizado.
Os temas geradores submetidos à análise dos especialistas deviam ser reduzidos a unidades de aprendizagem (como fizemos com o conceito de cultura e com as situações relacionadas com as palavras geradoras). Havíamos preparado cartazes a partir destas reduções, ou de textos simples que se referissem aos temas originais.
Além disso, elaborando um catálogo de temas reduzidos e de referências bibliográficas, que pusemos à disposição de colégios e universidades, pudemos ampliar o campo de ação da experiência.
Por outro lado, havíamos começado a preparar um material que devia permitir-nos realizar de maneira concreta uma educação na qual havia lugar para o que Aldous Huxley chama “a arte de dissociar idéias”, arte que é o antídoto da forca de domesticação da propaganda. Os alunos deviam discutir as situações – desafios –, desde a simples propaganda comercial à propaganda ideológica, e isto desde a fase de alfabetização.
À medida que os grupos percebem na discussão o que há de enganoso na propaganda – por exemplo, uma marca de cigarros, fumados por uma bela moça de biquini, sorridente e feliz, e que com seu sorriso, sua beleza e seu biquini nada tem a ver com os cigarros –, descobrem na primeira fase a diferença entre educação e propaganda. Preparam-se assim para perceber os mesmos enganos na propaganda ideológica ou política, no uso de “slogans”.
Capacitados para a crítica, estarão armados para a “dissociação de idéias” evocada por Huxley.11
No Brasil, quando pensava nas possibilidade de desenvolver um método com o qual fosse possível para os analfabetos aprender facilmente a ler e escrever, percebi que a melhor maneira não era desafiar o espeto crítico, a consciência do homem, mas (e é muito interessante ver como. mudei) procurar introduzir, na consciência das pessoas, alguns símbolos associados a palavras. E, em um segundo momento, desafiá-las criticamente para redescobrir a associação entre certos símbolos e as palavras, e assim apreendê-las.
Lembro-me que pedi ajuda a uma mulher de idade, muito amável, uma camponesa analfabeta que trabalhava em nossa casa como cozinheira. Um domingo, lhe disse: “Olha, Maria, eu procuro uma maneira nova de ensinar a ler aos que não sabem e tenho necessidade da sua ajuda. Você quer ajudar-me?” Ela aceitou. Levei-a à minha biblioteca e projetei um desenho com um menino e abaixo do desenho estava escrita a palavra “menino”. Perguntei-lhe: “Maria, o que é isso?” E ela: “um menino”. Projetei outro desenho com o mesmo menino, mas ortograficamente “menino” estava escrito sem a sílaba do meio ("meno”, em lugar de menino). Perguntei-lhe: “Maria, falta alguma coisa?” Ela me disse: “Oh, sim, falta. o do meio.” Sorrindo, mostrei-lhe outro desenho com um menino, mas com a palavra escrita sem m última sílaba (somente “meni”), e lhe perguntei outra vez: “Falta algo?” “Sim, o final.”
Discutimos cerca de uns 15 minutos sobre as diferentes possibilidades com menino, meno, nino, meni etc., e em cada ocasião ela descobria a parte da palavra que faltava. Par fim, me disse: “Estou cansada. É muito interessante, mas estou cansada,” Podia trabalhar, real-mente, o dia todo e, sem dúvida, depois de dez ou quinze minutos de um exercício intelectual, cansava-se. É compreensível. Ao terminar perguntou-me: “Você acredita que pude ajudá-lo?” Respondi-lhe: “Sim, ajudou-me muito, porque mudou minha maneira de pensar.” E ela: “Obrigada.” É formidável o poder do amor.
Deixou então minha biblioteca, para voltar cinco minutos depois com uma xícara de café. Quando me vi sozinho, voltei a pensar em minha primeira hipótese em função desta experiência. Descobri que faltava desafiar, desde o início, a intencionalidade da consciência, ou melhor, o poder de reflexão da consciência, e não como eu pensava antes. Creio que tudo isto é um bom exemplo para mostrar como é preciso refletir, constantemente, e mudar o rumo da investigação em que estamos compro-metidos. Assim, com este simples caso de Maria, me convenci de que era necessário proceder de outro modo, que faltava desafiar a consciência crítica, desde o começo. Alguns dias depois, comecei a trabalhar com um grupo de cinco homens, mas, desta vez, desafiando-os de maneira crítica, desde o começo.12
Aplicação
A concepção de liberdade, expressa por Paulo Freire, é a matriz que dd sentido a uma educação que não pode ser efetiva e eficaz senão na medida em que os educandos nela tomem parte de maneira livre e crítica. Este é um dos princípios essenciais da organização dos Círculos de Cultura, unidade de ensino que substitui a escola tradicional e reúne um coordenador com algumas dezenas de homens do povo, num trabalho comum de conquista da linguagem. O coordenador não exerce as funções de “professor”, a condição essencial da tarefa é o diálogo: "Coordenar, jamais impor sua influência.”
O respeito à liberdade dos alunos – que não são qualificados de analfabetos, mas de homens que aprendem a ler – existe muita antes da criação do Círculo de Cultura. Já na etapa da procura do vocabulário popular, durante a fase da preparação do curso, procura-se tanto quanto possível a intervenção do povo na elaboração do programa e a definição das palavras geradoras cuja discussão permitirá, àquele que aprende a ler, apropriar-se de sua linguagem ao mesmo tempo que expressa uma situação real – uma “situação-desafio”, como diz Paulo Freire. A alfabetização e a conscientização são inseparáveis. Todo aprendizado deve estar intimamente associado à tomada de consciência de uma situação real e vivida pelo aluno.
Para Paulo Freire, a aprendizagem é já uma maneira de tomar consciência do real e, portanto, não pode efetuar-se a não ser no seio desta tomada de consciência
Como chegar a isto? Utilizando um método ativo de educação, um método de diálogo – crítico e que convide à crítica –, modificando o conteúdo dos programas de educação.
Freire e sua equipe pensaram que a primeira dimensão deste conteúdo novo, com o qual poderiam ajudar o analfabeto – antes ainda de começar sua alfabetização – a passar da compreensão mágica e ingênua à compreensão crítica, era o conceito antropológico da cultura.
Consideraram que era indispensável, para realizar esta transformação essencial, fazer o homem simples percorrer todo um caminho através do qual descobrisse e tornasse consciência de:
– a existência de dois mundos, o da natureza e o da cultura;
– o papel ativo do homem na realidade e com ela;
– o papel de mediação, que joga a natureza nas relações e nas comunicações entre os homens;
– a cultura como resultado de seu trabalho, de seu esforço criador e recriador;
– a cultura como aquisição sistemática da experiência humana;
– a cultura como incorporação – crítica e criadora – e não como uma justaposição de informações ou de prescrições superadas;
– a democratização da cultura como dimensão da democratização fundamental;
– a aprendizagem da leitura e da escrita como chaves com as quais o analfabeto começará sua introdução no mundo da comunicação escrita;
- o papel do homem, que é o de sujeito e não de simples objeto.
Assim, a primeira situação, que trata de excitar a curiosidade do analfabeto e procura fazê-lo distinguir o mundo da natureza do mundo da cultura, apresenta um homem simples. Ao seu redor, seres da natureza (árvores, sol, pássaros...) e objetos da cultura (casa, poço, vestidos, ferramentas etc.), além de uma mulher e uma criança. Com a ajuda de um animador, estabelece-se um longo debate. Com perguntas simples, como: "Quem fez o poço? Par que o fez? Como? Quando o fez?”, perguntas que se repetem com relação aos diferentes elementos da situação, surgem dois conceitos fundamentais: o de “necessidade” e o de “trabalho”. Explica-se, então, a cultura num primeiro nível: o da subsistência.
O analfabeto chega a compreender que a falta de conhecimento é relativa e que a ignorância absoluta não existe. O simples fato de ser, penetra o homem de 'onhecimento, controle e criatividade.
Novamente, o coordenador faz perguntas: “Por que dançam? Quem inventou -a dança? Por que os homens criaram a música? Aquele que compõe uma ‘cueca’ pode ser um grande compositor?” A situação tende a mostrar que quem compõe música popular é tão grande artista como um célebre compositor.
Com o oitavo desenho entramos propriamente na fase da alfabetização. Organiza-se uma reunião ao redor de uma palavra e de um desenho. O grupo aprende que se pode simbolizar uma experiência vivida desenhando-a ou escrevendo-a. No lugar de uma casa luxuosa do médio burguês, comum nas cartilhas. encontramos uma casa humilde do Chile, e uma família com as características típicas da classe inferior. À esquerda, uma casa um pouco mais modesta ainda.
O coordenador do Círculo de Cultura guia o grupo na reflexão e na discussão sobre o sentido de “casa”, utilizando temas tais como a necessidade de um abrigo confortável para a vida familiar, o problema da habitação nos diferentes países e regiões e os problemas da habitação em relação à urbanização. Para desenvolver uma atitude crítica ante os acontecimentos diários, fazem-se perguntas como as seguintes: “Todos os chilenos têm habitações convenientes? Onde faltam casas? Por quê? R suficiente o sistema de poupança e de empréstimo para a aquisição de uma casa?"
No desenho número nove aparece uma situação diferente: uma “fábrica” com o letreiro que diz: “Não há vagas.” A expressão dos rostos revela, provavelmente, uma experiência que é real para muitos. Ainda que a palavra dirija-se a um grupo de camponeses, todos têm sua interpretação pessoal do sentido de “fábrica”, As perguntas para a discussão são as seguintes: “Onde são feitas as roupas que usamos, os instrumentos de que aos servimos para trabalhar, o papel e o lápis com que escrevemos? Uma fábrica intervém na produção de nosso alimento e na construção de nossas casas? Por que agora a gente não faz a maior parte dos artigos de que necessitamos como se fazia antes? Por que os países têm necessidade de industrializar-se? O Chile pode se industrializar mais? Que necessita um país para desenvolver-se do ponto de vista industrial? Que indústrias têm maiores possibilidades em nosso país? Recebem as zonas rurais influência da expansão industrial? Contribuem estas zonas para o progresso? Pode-se industrializar a agricultura e a pecuária?
A última situação gira ao redor da dimensão da cultura como aquisição sistemática da experiência humana. Daí passa-se ao debate sobre a democratização da cultura, com o que se abrem as perspectivas da alfabetização.
Estes debates, realizados nos Círculos de Cultura, com a ajuda dos educadores especialmente preparados para este trabalho de animação, revelam-se imediatamente como um meio bem poderoso e eficaz de conscientização, capaz de transformar radicalmente a atitude frente à vida.
Muitos dos que participaram deles afirmaram, durante os debates e as situações, que "não lhes era mostrado nada de novo, mas que se lhes refrescava a memória”, e isto os fazia felizes.
“Faço sapatos – disse uma vez um deles – e agora descobri que tenho o mesmo valor que o homem instruído que faz livros.”
“Amanhã – afirmou outro a propósito de uma discussão sobre o conceito de cultura – vou começar meu trabalho com a cabeça bem alta.” Era um varredor de rua que havia descoberto o valor de sua pessoa e a dignidade de seu trabalho.
PRÁXIS DA LIBERTAÇÃO
Três palavras chaves
A Opressão
Quem, melhor que os oprimidos, está preparado para compreender o terrível significado de uma sociedade opressora? Quem sofre os efeitos da opressão com mais intensidade que os oprimidos? Quem com mais clareza que eles pode captar a necessidade da libertação? Os oprimidos não obterão a liberdade por acaso, senão procurando-a em sua práxis e reconhecendo nela que é necessário lutar para consegui-la. E esta luta, por causa da finalidade que lhe dão os oprimidos, representará realmente um ato de amor, oposto à falta de amor que se encontra no coração da violência dos opressores, falta de amor ainda nos casos em que se reveste de falsa generosidade.
Mas quase sempre, durante a fase inicial do combate, em lugar de lutar pela liberdade, os oprimidos tendem a converter-se eles mesmos em opressores ou em “subopressores”.
É raro o caso de um camponês, promovido a chefe, que não seja mais tirano em relação a seus antigos camaradas que o próprio proprietário. Isto deve-se a que o contexto da situação do camponês (a opressão) permanece sem mudança. Neste exemplo, o chefe, para assegurar seu trabalho, tem de ser tão duro como o proprietário ou ainda mais. Isto ilustra nossa afirmação, segundo a qual, durante a fase inicial da luta, os oprimidos encontram no opressor seu “tipo de homem”.
Somente os oprimidos podem libertar os seus opressores, libertando-se a si mesmos. Eles, enquanto classe opressora, não podem nem libertar-se, nem libertar os outros. É pois essencial que os oprimidos levem a termo um combate que resolva a contradição em que estão presos, e a contradição não será resolvida senão pela aparição de um “homem novo” : nem o opressor, nem o oprimido, mas um homem em fase de libertação.
A Dependência
a tarefa fundamental dos países sub-desenvolvidos – o compromisso histórico de seus povos – é superar sua “situação-limite” de sociedades dependentes, para converterem-se em “seres-para-si-mesmos”. Sem isto estas sociedades continuarão a experiência da “cultura do silêncio”, que, havendo resultado das estruturas de dependência, reforça estas mesmas estruturas. Há, portanto, uma relação necessária entre dependência e “cultura do silêncio”. Ser silencioso não é não ter uma palavra autêntica, mas seguir as prescrições daqueles que falam e impõem sua voz. Alcançar a estado de “ser-para-si-mesmos” representa para as sociedades subdesenvolvidas o que eu chamo a possibilidade “não-experimentada”.
Não é possível compreender a cultura do silêncio senão vista como uma totalidade que faz dela parte de um conjunto maior. Neste conjunto de maior magnitude devemos também reconhecer a cultura ou as culturas que determinam o caminho da “cultura do silêncio”. Não queremos dizer que a “cultura do silêncio” seja à maneira de entidade, criada pela “metrópole” em laboratórios especializados e levada ao Terceiro Mundo. Tampouco é verdade que a “cultura do silêncio” nasça por geração espontânea. Na realidade, a “cultura do silêncio” nasce da relação do Terceiro Mundo com a metrópole. “Não é o dominador que constrói uma cultura e a impõe aos dominados. Ela é o resultado de relações estruturais entre os dominados e o dominador.” Assim, para compreender a “cultura do silêncio”, é necessário primeiro fazer uma análise da dependência como fenômeno relacional que dá origem a diferentes formas de ser, de pensar, de expressar-se, as da cultura do silêncio e as da cultura que “tem uma palavra”...
A sociedade dependente é, por definição, uma sociedade silenciosa. Sua voz não é uma voz aut8ntica, mas um simples eco da voz da metrópole.
De todas as maneiras, a metrópole fala e a sociedade dependente escuta.
O silêncio da sociedade-objeto, em relação à sociedade-dirigente, repete-se nas relações que se estabelecem no seio da mesma sociedade-objeto. Suas elites no poder, silenciosas frente à metrópole, fazem calar, por sua vez, ao povo. E somente quando o povo de uma sociedade dependente rompe a “cultura do silêncio” e conquista o direito da palavra – ou melhor, quando as mudanças radicais de estrutura transformam a sociedade dependente –, é quando uma tal sociedade, em seu conjunto, pode deixar de ser silenciosa em relação à sociedade dirigente.
Por aí as massas começarão a sair de seu silêncio, assumindo atitudes cada vez mais exigentes. Na medida em que vão sendo satisfeitas suas exigências, as massas tenderão não só a multiplicá-las, como também a modificar a natureza das mesmas.
Um tipo de consciência corresponde à realidade concreta destas sociedades em estado de dependência. Uma consciência historicamente condicionada pelas estruturas sociais. A principal característica desta consciência – tão dependente como é a sociedade da estrutura a que se conforma – é sua “quase-aderência” à realidade objetiva ou sua “quase-imersão” na realidade. A consciência dominada não se distancia suficientemente da realidade para objetivá-la, a fim de conhecê-la de maneira crítica.
A este tipo de consciência chamamos "semi-intransitiva”.
A consciência semi-intransitiva é característica das estruturas fechadas.
A Marginalidade
A percepção não-estrutural do analfabetismo tem revelado uma visão errônea dos analfabetos, como homens marginalizados. Aqueles que os consideram como marginalizados devem, todavia, reconhecer a existência de uma realidade em relação à qual os analfabetos são marginalizados: não somente no espaço físico, mas realidades históricas, sociais, culturais e econômicas; ou seja a dimensão estrutural da realidade. Desta maneira, deve-se considerar os analfabetos como seres “fora de”, “à margem de” algo, já que é impossível estarem marginalizados sem relação a uma coisa. Mas, estar “fora de”, “à margem de”, implica necessariamente num movimento daquele que se diz marginalizado em direção ao que é o centro em relação à periferia. Este movimento, que é uma ação, pressupõe não somente um agente, como também a existência de algumas razões. Se se admite a existência de homens “fora de”, ou “à margem” da realidade estrutural, parece legítimo perguntar-se quem é o autor deste movimento do centro da estrutura para sua margem. São aqueles que se dizem marginalizados – entre eles os analfabetos – que decidem deslocar-se para a periferia da sociedade?
Os educadores seriam benevolentes conselheiros que percorreriam os bairros da cidade à procura dos analfabetos escapados da vida reta, para fazê-los encontrar a felicidade, entregando-lhes o presente da palavra.
Dentro de tal visão, infelizmente muito difundida, os programas de alfabetização não podem jamais ser esforças para alcançar a liberdade. Nunca colocarão em questão a própria realidade que priva os homens do direito de falar – não somente aos analfabetos, como também a todos aqueles que são tratados como objeto numa relação de dependência. Na realidade, estes homens – analfabetos ou não – não são marginalizados. Repetimos: não estão “fora de”, são seres “para o outro”. Logo, a solução de seu problema não é converterem-se em “seres no interior de”, mas em homens que se libertam, porque não são homens à margem da estrutura, mas homens oprimidos no interior desta mesma estrutura. Alienados, não podem superar sua dependência incorporando-se à estrutura que é responsável por esta mesma dependência. Não há outro caminho para a humanização – a sua própria e a dos outros –, a não ser uma autêntica transformação da estrutura desumanizante.
Sob esta perspectiva, o analfabeto não é então uma pessoa que vive à margem da sociedade, um homem marginal, mas apenas um representante dos extratos dominados da sociedade, em oposição consciente ou inconsciente àqueles que, no interior da estrutura, tratam-no como uma coisa. Assim, quando se ensina os homens a ler e a escrever, não se trata de um assunto intranscendente de ba, be, bi, bo, bu, da memorização de uma palavra alienada, mas de uma difícil aprendizagem para “nomear o mundo”.
Nova Relação Pedagógica
Nas sociedades em que a dinâmica estrutural conduz à escravização das consciências, “a pedagogia dominante é a pedagogia das classes dominantes”. Porque, pelo duplo mecanismo da assimilação, ou melhor, da introjeção, a pedagogia que impõe-se às classes dominadas como “legítima” – como fazendo parte do saber oficial – provoca ao mesmo tempo o reconhecimento por parte das classes dominadas da “ilegitimidade” de sua própria cultura. Encontra-se, assim, ao nível da educação, esta “alienação da ignorância’ com u qual Paulo Freire tem freqüentemente experiência em suas investigações: o pobre absolutiza sua própria ignorância em proveito do “patrão” e “daqueles que são como o patrão”, que se convertem em juízes e garantidores de todo saber.
Deste modo, a opressão encontra na lógica do sistema de ensino atual um instrumento de eleição para fazer aceitar e prolongar o “status quo”; quer dizer, sob pretexto de melhorar e de “integrar socialmente”, a ação pedagógica contribui para aprofundar e legalizar “um abismo profundo entre as classes”.
Uma análise exata das relações professor – aluno em todos os níveis, na escola ou fora dela, revela seu caráter essencialmente narrativo. Esta relação supõe um sujeito narrador: o professor, e supõe objetos pacientes que escutam: os alunos. O conteúdo, seja de valores ou de dimensões empíricas da realidade, tem tendência a converter-se em algo sem vida e a petrificar-se uma vez enunciado. A educação padece da doença da narração.
O professor fala da realidade como se esta fosse sem movimento, estática, separada em compartimentos e previsível; ou então, fala de um tema estranho à experiência existencial dos estudantes: neste caso sua tarefa é “encher” os alunos do conteúdo da narração, conteúdo alheio à realidade, separado da totalidade que a gerou e poderia dar-lhe sentido.
Assim, a educação passa a ser “o ato de depositar”, no qual os alunos são os depósitos e o professor aquele aquele que deposita. Em lugar de comunicar, o professor dá comunicados que os alunos recebem pacientemente, aprendem e repetem. É a concepção “acumulativa” da educação (concepção bancária).
.. Na concepção bancária da educação, o conhecimento é um dom concedido por aqueles que se consideram como seus possuidores àqueles que eles consideram que nada sabem. Projetar uma ignorância absoluta sobre os outros é característica de uma ideologia de opressão. É uma negação da educação é do conhecimento como processo de procura. O professor apresenta-se a seus alunos como seu “contrário” necessário: considerando que a ignorância deles é absoluta, justifica sua própria existência. Os alunos, alienados como o escravo na dialética hegeliana, aceitam sua ignorância como justificativa para a existência do professor, mas diferentemente do escravo, jamais descobrem que eles educam o professor.
...A educação bancária mantém e ainda reforça as contradições através das práticas e das atitudes seguintes, que refletem a sociedade opressora em seu conjunto:
a) o professor ensina, os alunos são ensinados;
b) o professor sabe tudo, os alunos nada sabem;
c) o professor pensa para si e para os estudantes;
d) o professor fala e os alunos escutam;
e) o professor estabelece a disciplina e os alunos são disciplinados;
f) o professor escolhe, impõe sua opção, os alunos submetem-se;
g) o professor atua e os alunos trem a ilusão de atuar graças à ação do professor;
h) o professor escolhe o conteúdo do programa e os alunos – que não foram consultados – adaptam-se;
i) o professor confunde a autoridade do conhecimento com sua própria autoridade profissional, que ele opõe à liberdade dos alunos;
j) o professor é sujeito do processo de formação enquanto que os alunos são simples objetos dele.
Aqueles que utilizam o método bancário, conscientemente ou não – porque há inúmeros professores “bancários”, bem-intecionados, que não se dão conta de que servem somente para desumanizar –, não percebem que os próprios depósitos contêm contradições sobre a realidade.
Mas o educador humanista revolucionário não pode esperar que esta possibilidade se apresente. Desde o começo, seus esforços devem corresponder com os dos alunos para comprometer-se num pensamento crítico e numa procura da mútua humanização. Seus esforços devem caminhar junto com uma profunda confiança nos homens e em seu poder criador. Para obter este resultado deve colocar-se ao nível dos alunos em suas relações com eles.
Em resumo: a teoria e a prática bancária, enquanto forças de imobilização e de fixação, não reconhecem os homens como seres históricos; a teoria e a prática críticas tornam como ponto de partida a historicidade do homem.
A educação crítica considera os homens como seres em devir, como seres inacabados, incompletos em uma realidade igualmente inacabada e juntamente com ela. Por oposição a outros animais, que são inacabados mas não históricos, os homens sabem-se incompletos. Os homens têm consciência de que são incompletos, e assim, nesse estar inacabados e na consciência que disso têm, encontram-se as raízes mesmas da educação como fenômeno puramente humano. O caráter inacabado dos homens e o caráter evolutivo da realidade exigem que a educação seja 'uma atividade contínua. A educação é, deste modo, continuamente refeita pela práxis. Para ser, deve chegar a ser. Sua duração – no sentido bergsoniano da palavra – encontra-se no jogo dos contrários: estabilidade e mudança. O método bancário põe o acento sobre a estabilidade e chega a ser reacionário. A educação problematizadora – que não aceita nem um presente bem conduzido, nem um futuro predeterminado – enraíza-se no presente dinâmico e chega a ser revolucionária.
A educação crítica é a "futuridade” revolucionária. Ela é profética – e, como tal, portadora de esperança – e corresponde à natureza histórica do homem. Ela afirma que os homens são seres que se superam, que vão para a frente e olham para o futuro, seres para os quais a imobilidade representa uma ameaça fatal, para os quais ver o passado não deve ser mais que um meio para compreender claramente quem são e o que são, a fim de construir o futuro com mais sabedoria. Ela se identifica, portanto, com o movimento que compromete os homens como seres conscientes de sua limitação, movimento que é histórico e que tem o seu ponto de partida, o seu sujeito, o seu objetivo.
O diálogo é o encontro entre os homens, mediatizados pelo mundo, para designá-lo.
Se ao dizer suas palavras, ao chamar ao mundo, os homens o transformam, o diálogo impõe-se como o caminho pelo qual os homens encontram seu significado enquanto homens; o diálogo é, pois, uma necessidade existencial.
“O homem de diálogo” é crítico e sabe que embora tenha e poder de criar e de transformar tudo, numa situação completa de alienação, pode-se impedir os homens de fazer uso deste poder.
O método correto é o diálogo. A convicção dos oprimidos de que devem lutar por sua libertação não é um presente dos líderes revolucionários, mas o resultado de sua própria conscientização.
Ação Cultural e Revolução Cultural
Uma pedagogia utópica de denúncia e de anúncio, como a nossa, tem de ser um ato de conhecimento da realidade denunciada, ao nível da alfabetização e da pós-alfabetização, que constituem, em cada caso, uma ação cultural. Por isto se acentua a problematização contínua das situações existenciais dos educandos tal como são apresentadas nas imagens codificadas. Quanto mais progride a problematização, mais penetram os sujeitos na essência do objeto problematizado e mais capazes são de “desvelar” esta essência. Na medida em que a “desvelam”, se aprofunda sua consciência nascente, conduzindo assim à conscientização da situação pelas classes pobres.
Por isso a conscientização é um projeto irrealizável para as direitas. A direita é, por natureza, incapaz de ser utópica e não pode, portanto, praticar uma forma de ação cultural que conduziria à conscientização. Não se pode dar conscientização ao povo sem uma denúncia radical das estruturas desumanizantes, que marche junto com a proclamação de uma nova realidade que pode ser criada pelos homens. A direita não pode desmascarar-se; não pode também dar ao povo os meios de desmascará-la mais do que ela deseja. Quando a consciência popular se esclarece, sua própria consciência aumenta, mas esta forma de conscientização não pode jamais se transformar numa práxis que conduza à conscientização das pessoas. Não pode haver conscientização sem denúncia das estruturas injustas, o que não se pode esperar da direita. Também não pode haver conscientização popular para a dominação. Somente para a dominação a direita inventa novas formas de ação cultural.
Assim, os dois tipos de ação cultural são antagônicos.
Enquanto a ação cultural para a liberdade se caracteriza pelo diálogo e seu fim principal é conscientizar as massas, a ação cultural para a dominação se opõe ao diálogo e serve para domesticá-las.
Para terminar, expliquemos as razões pelas quais falamos de ação cultural e revolução cultural como de momentos dísticos do processo revolucionário. A ação cultural para a liberdade empreende-se contra a elite dominadora do poder, enquanto que a revolução cultural desenvolve-se em harmonia com o regime revolucionário, apesar de isto não significar que esteja subordinada ao poder revolucionário. Toda revolução cultural apresenta a liberdade como finalidade. Ao contrário, a ação cultural, se for conduzida por um regime opressor, pode ser uma estratégia de dominação: nesse caso jamais chegará a ser revolução cultural.
Perguntas para Estudos da AP 1
Considere as citações abaixo, retiradas do Livro Conscientização, e discuta-as.
1) (...) “a educação, como prática da liberdade é um ato de conhecimento, uma aproximação crítica da realidade.”
Para Freire, de acordo com a pedagogia da liberdade, preparar para a democracia não pode significar somente converter o analfabeto em eleitor, condicionando-o às alternativas de um esquema de poder já existente. Uma educação deve preparar, ao mesmo tempo, para um juízo crítico das alternativas propostas pela elite, e dar a possibilidade de escolher o próprio caminho.
2) “A conscientização, como atitude crítica dos homens na história, não terminará jamais.”
De acordo com Freire, Conscientização é um compromisso histórico. É também consciência histórica: é inserção crítica na história, implica que os homens assumam o papel de sujeitos que fazem e refazem o mundo. Exige que os homens criem sua existência com um material que a vida lhes oferece...
A conscientização não está baseada sobre a consciência, de um lado, e o mundo, de outro; por outra parte, não pretende uma separação. Ao contrário, está baseada na relação consciência – mundo.
3) “Pensávamos em uma alfabetização que fosse ao mesmo tempo um ato de criação, capaz de gerar outros atos criadores; uma alfabetização na qual o homem, que não é passivo e nem objeto, desenvolvesse a atividade e a vivacidade da invenção e da reinvenção, características dos estados de procura.”
Contradizendo os métodos de alfabetização puramente mecânicos, projetávamos levar a termo uma alfabetização direta, ligada realmente à democratização da cultura e que servisse de introdução; ou, melhor dizendo, uma experiência susceptível de tornar compatíveis sua existência de trabalhador e o material que lhe era oferecido para aprendizagem.
4) Faltando uma tal reflexão sobre o homem, corre-se o risco de adorar métodos educativos e maneiras de atuar que reduzem o homem à condição de objeto.
Para ser válida, toda educação, toda ação educativa deve necessariamente estar precedida de uma reflexão sobre o homem e de uma análise do meio de vida concreto do homem a quem queremos educar (ou melhor dito: a quem queremos ajudar a educar-se).
5) Para Freire, a vocação do homem é a de ser sujeito e não objeto.(...) O homem é um ser de raízes espaço-temporais.
Para ser válida, a educação deve considerar a vocação ontológica do homem – vocação de ser sujeito – e as condições em que ele vive: em tal lugar exato, em tal momento, em tal contexto.
6 ) “A educação não é um instrumento válido se não estabelece uma relação dialética com o contexto da sociedade ao qual o homem está radicado.”
Mais exatamente, para ser instrumento válido, a educação deve ajudar o homem, a partir de tudo o que constitui sua vida, a chegar a ser sujeito.(...) O homem chega a ser sujeito por uma reflexão sobre sua situação, sobre seu ambiente concreto.
Quanto mais refletir sobre a realidade, sobre sua situação concreta, mais emerge, plenamente consciente, comprometido, pronto a intervir na realidade para mudá-la.
7 ) O homem, pondo em prática sua capacidade de discernir, descobre-se frente a esta realidade que não lhe é somente exterior (... não pode, por outro lado, ter relações mais que com algo ou alguém exterior a si mesmo, nunca consigo mesmo), mas que o desafia, o provoca.
O importante é advertir que a resposta que o homem dá um desafio não muda só a realidade com a qual se confronta: a resposta muda o próprio homem, cada vez um pouco mais, e sempre de modo diferente. “Pelo jogo constante destas respostas o homem se transforma no ato mesmo de responder”, diz Paulo Freire.
8 ) Na medida em que o homem, integrando-se nas condições de seu contexto de vida, reflete sobre elas e leva respostas aos desafios que se lhe apresentam, cria cultura.
A partir das relações que estabelece com seu mundo, o homem, criando, recriando, decidindo, dinamiza este mundo. Contribui com algo do qual ele é autor... Por este fato cria cultura.
Concluindo
O objetivo da Conscientização da Educação, segundo Freire, é provocar uma atitude crítica, de reflexão, que comprometa a ação.
Dois resumos postados sobre PEDAGOGIA DO OPRIMIDO: Um mais sucinto (netsaber) e outro mais analítico (Jeane Vanessa)
Escrito no período em que o autor esteve exilado de seu país, o Brasil, durante o período da Ditadura Militar, o livro oferece um mergulho no pensamento de Paulo Freire sobre seu modo de ver e ler o mundo. Neste livro Paulo Freire esboça caminhos sociais rumo a uma sociedade livre através da extinção da relação de opressão presentes no sistema capitalista. Para Freire, só a libertação dos opressores, feita pela movimentação e conscientização dos oprimidos, poderia ser o elo propulsor para construir uma sociedade de iguais.
Neste sentido, a educação aparece com o papel central para efetivar o seu pensamento, pois que através de uma educação libertária, o oprimido poderia tomar consciência de sua situação e buscar sua liberdade bem como a de seu opressor. Para tal, propõe que o educador conheça em profundidade cada comunidade que irá educar, conheça a realidade e as palavras que são significativas para cada grupo de pessoas. Desta forma, as palavras que serão ensinadas na escrita e na leitura, são justamente as que fazem parte do cotidiano destas pessoas.
Assim, Freire acredita que ao conhecer a sua palavra e transformá-la em ação e posterior reflexão, o oprimido passaria de um estágio ingênuo para um estado consciente de sua situação social e tentaria suplantá-la.
http://resumos.netsaber.com.br
PEDAGOGIA DO OPRIMIDO (Resumo)
Jeane Vanessa Santos Silva*
Graduada em filosofia pela Universidade Federal de Sergipe e Mestranda em Filosofia Analítica do Programa de Pós Graduação da Universidade Federal da Paraíba; também faz parte do Grupo de Estudos sobre Conhecimento e Ciência (GE2C).
Paulo Freire é caracterizado com um pensador que se comprometeu, além das idéias, com a própria vida, com a própria existência; na Pedagogia do Oprimido ele nos apresenta sua experiência cativada no exílio durante cinco anos, bem como nos mostra o papel conscientizador da educação numa ação libertadora do próprio "medo da liberdade".Para Paulo Freire vivemos numa sociedade dividida em classes, sendo que os privilégios de uns impedem que a maioria usufrua dos bens produzidos e, coloca como um desses bens produzidos e necessários pata concretizar a vocação necessária do ser mais, a educação, da qual é excluída grande parte da população do Terceiro Mundo.Refere-se então a dois tipos de pedagogia: a pedagogia dos opressores, onde a educação existe como uma prática de dominação e a pedagogia do oprimido que precisa ser realizada para que surja uma educação com prática de liberdade.
O movimento da liberdade deve surgir e partir dos próprios oprimidos, e a pedagogia decorrente será gerada nos homens e não para os homens; vê-se que não é suficiente que o oprimido tenha consciência crítica da opressão, mas, que se disponha a transformar essa realidade, trata-se de um trabalho de conscientização e politização. A violência dos opressores é gerada por uma ordem que se posiciona injustamente sendo resultado de um processo histórico de desumanização.Esta desumanização dá margem ao surgimento da luta pelo direito de cada ser humano, a luta pela liberdade trabalhista, e pela afirmação do homem enquanto indivíduo possuidor destes direitos.
Em relação à definição de oprimidos e opressores pode haver algumas contradições; o que torna os opressores desumanizados é sua violência, e essa violência faz com que os oprimidos tendam a reagir lutando contra quem os oprime, contra quem os fez menos.Essa luta só adquire sentido quando o ser menos, ao buscar sua humanização, não se reconhece opressor devolvendo a quem o oprimiu tal violência.A libertação se dá á medida que o oprimido reconquista sua humanidade em ambos os papéis que possivelmente ocupa o do ser mais e o do ser menos.
Toda a Pedagogia do Oprimido se apresenta como um texto problematizador, que explicita a própria teoria da educação do homem; essa teoria da educação se reflete em generosidade verdadeira e humanista podendo alcançar o objetivo da libertação.Só unindo teoria e prática essa libertação pedagógica será possível, além disto, quando os líderes de uma revolução estabelecem uma relação dialógica, ao contrário de tentar sobrepor-se aos oprimidos querendo mantê-los como quase "coisas", isso se dá efetivamente.A pedagogia que parte de interesses individuais, a pedagogia "humanitarista", que está repleta de opressores que se disfarçam de generosos, essa pedagogia promove e constrói a desumanização.Quando os oprimidos se reconhecem como seus próprios refazedores permanentes é porque foram capazes de alcançar na prática o saber da realidade.Esta presença dos oprimidos na busca de sua libertação mesma é, assim como deve ser, um engajamento, desta forma esta atitude se configura como mais que uma pseudo-participação.
Paulo Freire também estabelece uma diferença crucial quando trata de educação bancária e educação libertadora.A pedagogia dominante é fundamentada em uma concepção bancária de educação (predomina o discurso e a prática, na qual, quem é o sujeito da educação é o educador, sendo os educandos como vasilhas a serem enchidas; o educador deposita "comunicados", que estes, recebem, memorizam e repetem), da qual deriva uma prática totalmente verbalista, dirigida para a transmissão e avaliação de conhecimentos abstratos, numa relação vertical, o saber é dado, fornecido de cima pra baixo, e autoritária, pois manda quem sabe.Na educação bancária o educador é sempre o que sabe, enquanto os educandos serão os que não sabem. A rigidez destas posições nega a educação e o conhecimento como processo de busca; educador é o sujeito do processo enquanto o educando o mero objeto.Desta maneira o educando, em sua passividade, torna-se apenas um objeto receptor numa falsa pressuposição de um mundo harmonioso, no qual não há contradições.
O método freireano não ensina a mera repetição de palavras, mas, a despeito disto, coloca o educando numa posição de poder re-existenciar criticamente as palavras de seu mundo.É a palavra que o homem constrói seu mundo e se diferencia dos animais.Aprender a escrever sua vida é o principal e mais exato sentido da alfabetização, aprender a escrever sua própria vida enquanto autor e testemunha constituindo historicamente sua forma e sua consciência se fazendo reflexivamente responsável pela história.
Enquanto a educação bancária é vista como uma modalidade em que o educador é o único detentor do conhecimento e o educando é vaso vazio a ser preenchido pela sabedoria do mestre, na educação libertadora, ao contrário, há interação entre educando e educador onde o ensino e a aprendizagem partem, ambos, de ambos os lados.Quem ensina aprende e quem aprende ensina simultaneamente. Nesta educação problematizadora proposta por Paulo Freire o conhecimento não é transferido do educador para o educando, mas, a despeito disto, ocorre um compartilhamento de experiências onde se encontram as condições necessárias para a construção de seres críticos, no decorrer do diálogo com o educador, por sua vez, também ser crítico.
Dentro da situação concreta de opressão e oprimidos, a auto-desvalia é uma das características do oprimido, que resulta da introjeção que fazem eles da visão que deles tem os opressores. De tanto ouvirem de si mesmos que são incapazes, indolentes, que não sabem nada, que não podem saber, acabam por se convencer de sua "incapacidade".Quando isto efetivamente ocorre o mundo do oprimido não é visto a partir de uma nova perspectiva que valoriza a verdade das palavras numa mediatização dos sujeitos conhecedores, que, por sua vez, não culminam em sua própria humanização.
O diálogo não é um produto histórico, é a própria historicização, é ele, pois, o movimento constitutivo da consciência que abrindo-se para a infinitude, vence intencionalmente as fronteiras da finitude e, incessantemente, busca reencontrar-se além de si mesmo. Expressar-se expressando o mundo, implica o comunicar-se.Alfabetização não é um jogo de palavras, é a consciência reflexiva da cultura, a reconstrução critica do mundo humano, é toda a pedagogia: aprender a ler é aprender a dizer sua palavra-ação.A teoria contrária, a anti-dialógica, se caracteriza nas elites dominadoras e essas classes têm interesse em dividir a sociedade entre eles e a 'massa popular', pois se não ocorrer tal divisão a classe oprimida pode despertar em um sentimento de união que é indispensável à ação libertadora; já a teoria da ação dialógica se caracteriza numa classe ocupada em revolucionar libertadoramente os métodos estabelecidos, nesta classe é possível encontrar os sujeitos que visam à transformação do mundo através da educação.
Vemos que na teoria anti-dialógica o sujeito domina o objeto, enquanto na teoria dialógica os sujeitos unidos e reunidos pronunciam o mundo.Enquanto na ação anti-dialógica a elite dominadora disfarça o mundo para dominá-lo de melhor forma a ação dialógica visa desvelar o mundo; este desvelamento do mundo e do próprio indivíduo enquanto parte dele possibilita, na prática cotidiana, à adesão das massas populares.Esta adesão se dá ao mesmo tempo que as massas populares confiam em si mesmas e em suas lideranças revolucionárias, pois percebem a dedicação e a verdadeira defesa da libertação dos homens. Para os opressores, o que vale é ter cada vez mais, à custa, inclusive do ter menos ou do nada ter dos oprimidos. Ser para eles, é ter, e ter como classe que tem. O sadismo aparece como uma das características da consciência opressora, na sua visão necrófila do mundo. Por isto é que seu amor é um amor as avessas – um amor a morte e não a vida.
Na teoria dialógica as lideranças revolucionárias se sentem obrigadas a manter a união dos oprimidos entre si em virtude da libertação; esta obrigação na prática é pó ponto fundamental.O contrário do que ocorre com a elite opressora que mantém sua unidade interna no intuito de fortalecer sua organização e poder e por isso importa sua separação das massas; para a liderança revolucionária deve haver unidade entre ela e as massas.A ação da unidade em virtude da libertação se contrapõe á vontade da classe dominante e por este motivo é tão difícil para as lideranças revolucionária manter esta união; o ponto inicial para manter a un
idade é o
desvelamento da realidade, a desmistificação do real, de modo que
também é imprescindível uma forma de ação cultural através da
qual se possa conhecer o porquê e o como da "aderência" à
realidade que lhes dá um conhecimento falso dela e de si mesmo;
também é necessário desfazer a ideologia e conhecer a verdadeira
maneira que o mundo se apresenta, realizando, deste modo, uma adesão
à verdadeira prática de transformação da realidade injusta.Teoria e Prática da Libertação
Como diretor do Departamento de Educação e de Cultura do SESI, em Pernambuco, e depois na Superintendência, de 1946 a 1954, fiz as primeiras experiências que me conduziram mais tarde ao método que iniciei em 1961. Isto teve lugar no movimento de Cultura Popular do Recife, um de cujos fundadores fui, e que mais tarde teve continuidade no Serviço de Extensão Cultural da Universidade do Recife; coube-me ser seu primeiro diretor.
O golpe de Estado (1964) não só deteve todo este esforço que fizemos no campo da educação de adultos e da cultura popular, mas também levou-me à prisão por cerca de cerca de 70 dias (com muitos outros, comprometidos no mesmo esforço). Fui submetido durante quatro dias a interrogatórios, que continuaram depois no IPM do Rio. Livrei-me, refugiando-me na Embaixada da Bolívia em setembro de 1964. Na maior parte dos interrogatórios a que fui submetido, o que se queria provar, além de minha “ignorância absoluta” (como se houvesse uma ignorância ou sabedoria absolutas; esta não existe senão em Deus), o que se queria provar, repito, era o perigo que eu representava.
Fui considerado como um “subversivo internacional”, um “traidor de Cristo e do povo brasileiro”, "Nega o senhor – perguntava um dos juízes – que seu método é semelhante ao de Stalin, Hitler, Perón e Mussolini? Nega o senhor que com seu pretendido método o que quer é tornar bolchevique o país?...”
O que aparecia muito claramente em toda esta experiência, de que saí sem ódio nem desesperação, era que uma onda ameaçadora de irracionalismo se estendia sobre nós: forma ou distorção patológica da consciência ingênua, perigosa ao extremo por causa da falta de amor que a alimenta, por causa da mística que a anima1.
Seu movimento começou em 1962 no Nordeste, a região mais pobre do Brasil – 15 milhões de analfabetos sobre 25 milhões de habitantes. Neste momento, a "Aliança para o Progresso”, que fazia da miséria do Nordeste seu “leitmotiv” no Brasil, interessou-se pela experiência realizada na cidade de Angicos, Rio Grande do Norte (interesse que teve seu fim pouco tempo depois da própria experiência).
Os resultados obtidos – 300 trabalhadores alfabetizados em 45 dias – impressionaram profundamente a opinião pública. Decidiu-se aplicar o método em todo o território nacional, mas desta vez com o apoio do Governo Federal.
De acordo com a pedagogia da liberdade, preparar para a democracia não pode significar somente converter o analfabeto em eleitor, condicionando-o às alternativas de um esquema de poder já existente. Uma educação deve preparar, ao mesmo tempo, para um juízo crítico das alternativas propostas pela elite, e dar a possibilidade de escolher o próprio caminho.
Os políticos populistas não compreendem as relações entre alfabetização e “conscientização”. Obsecados por um único resultado – o aumento do número de eleitores –, deram somente um apoio muito escasso, do ponto de vista político, a esta forma de mobilização.
Na realidade, raciocinavam de maneira muito simplista ante o problema. Se um educador de fama oferece a possibilidade de alfabetizar em muito pouco tempo o conjunto do povo brasileiro, ideal este desejado durante décadas por todos os governos, por que não dar-lhe o apoio do Estado? Por isso não compreenderam a agitação criada ao redor da pedagogia de Paulo Freire pelos grupos de direita. Os políticos viram o Movimento de Educação Popular como qualquer outra forma de mobilização de massas: em função de suas preocupações eleitorais; e propuseram uma revolução verbal e abstrata, aí onde era necessário prosseguir a reforma prática em curso.
O método de Paulo Freire é utilizado em todos os programas oficiais de alfabetização do Chile.
Como o presidente Frei assinalou num discurso sobre o estado da nação, sua administração queria “aumentar a participação popular no desenvolvimento de toda a comunidade. Não somente nas políticas dos partidos... mas, sobretudo, nas expressões reais de nossa vida atual: o trabalho, a vida local e regional, as necessidades da família, a cultura de base e a organização econômica-social”.
O problema converteu-se, naquele momento, em tornar aceito no Chile um método considerado subversivo no Brasil.
O Escritório de Planejamento para a Educação de Adultos, como o seu próprio nome indica, não se ocupa somente da alfabetização, mas também do conjunto de programas que tem por finalidade permitir àqueles que não receberam educação superar esta inferioridade. Recentemente o Escritório incentivou os analfabetos, graças ao método de Paulo Freire, a continuar seus estudos em um curso superior.
ALFABETIZAÇÃO E CONSCIENTIZAÇAO
Acredita-se geralmente que sou autor deste estranho vocábulo “conscientização” por ser este o conceito central de minhas idéias sobre a educação. Na realidade, foi criado por uma equipe de professores do INSTITUTO SUPERIOR DE ESTUDOS BRASILEIROS por volta de 1964. Pode-se citar entre eles o filósofo Álvaro Pinto e o professor Guerreiro. Ao ouvir pela primeira vez a palavra conscientização, percebi imediatamente a profundidade de seu significado, porque estou absolutamente convencido de que a educação, como prática da liberdade, é um ato de conhecimento, uma aproximação crítica da realidade.
Desde então, esta palavra, conscientização, forma parte de meu vocabulário. Mas foi Hélder Câmara quem se encarregou de difundi-la e traduzi-la para o inglês e para o francês.
Conscientização é um compromisso histórico. É também consciência histórica: é inserção crítica na história, implica que os homens assumam o papel de sujeitos que fazem e refazem o mundo. Exige que os homens criem sua existência com um material que a vida lhes oferece...4
A conscientização não está baseada sobre a consciência, de um lado, e o mundo, de outro; por outra parte, não pretende uma separação. Ao contrário, está baseada na relação consciência – mundo.
o processo de alfabetização política – como o processo lingüístico – pode ser uma prática para a “domesticação dos homens”, ou uma prática para sua libertação. No primeiro caso, a prática da conscientização não é possível em absoluto, enquanto no segundo caso o processo é, em si mesmo, conscientização. Daí uma ação desumanizante, de um lado, e um esforço de humanização, de outro.5
No nosso método, a codificação, a princípio, toma a forma de uma fotografia ou de um desenho que representa uma situação existencial real ou uma situação existencial construída pelos alunos. Quando se projeta esta representação, os alunos fazem uma operação que se encontra na base do ato de conhecimento; se distanciam do objeto cognoscível. Desta maneira os educadores fazem a experiência da distanciação, de forma que educadores e alunos possam refletir juntos, de modo crítico, sobre o objeto que os mediatiza. O fim da descodificação é chegar a um nível crítico de conhecimento, começando pela experiência que o aluno tem de sua situação em seu “contexto real”.
Para ser válida, toda educação, toda ação educativa deve necessariamente estar precedida de uma reflexão sobre o homem e de uma análise do meio de vida concreto do homem concreto a quem queremos educar (ou melhor dito: a quem queremos ajudar a educar-se).
Faltando uma tal reflexão sobre o homem, corre-se o risco de adorar métodos educativos e maneiras de atuar que reduzem o homem à condição de objeto.
Assim, a vocação do homem é a de ser sujeito e não objeto. Pela ausência de uma análise do meio cultural, corre-se o perigo de realizar uma educação pré-fabricada, portanto, inoperante, que não está adaptada ao homem concreto a que se destina.
Por outra parte, não existem senão homens concretos (“não existe homem no vazio”). Cada homem está situado no espaço e no tempo, no sentido em que vive numa época precisa, num lugar preciso, num contexto social e cultural preciso. O homem é um ser de raízes espaço-temporais.
Para ser válida, a educação deve considerar a vocação ontológica do homem – vocação de ser sujeito – e as condições em que ele vive: em tal lugar exato, em tal momento, em tal contexto.
Mais exatamente, para ser instrumento válido, a educação deve ajudar o homem, a partir de tudo o que constitui sua vida, a chegar a ser sujeito. E isto o que expressam frases como: “A educação não é um instrumento válido se não estabelece uma relação dialética com o contexto da sociedade ao qual o homem está radicado.”
O homem chega a ser sujeito por uma reflexão sobre sua situação, sobre seu ambiente concreto.
Quanto mais refletir sobre a realidade, sobre sua situação concreta, mais emerge, plenamente consciente, comprometido, pronto a intervir na realidade para mudá-la.
Através destas relações é que o homem chega a ser sujeito. O homem, pondo em prática sua capacidade de discernir, descobre-se frente a esta realidade que não lhe é somente exterior (... não pode, por outro lado, ter relações mais que com algo ou alguém exterior a si mesmo, nunca consigo mesmo), mas que o desafia, o provoca. As relações do homem com a realidade, com seu contexto de vida – trata-se da realidade social ou do mundo das coisas da natureza – são relações de afrontamento: a natureza se opõe ao homem; ele se defronta continuamente com ela; as relações do homem com os outros homens, com as estruturas sociais são também de choque, na medida em que, continuamente, o homem nas suas relações humanas se sente tentado a reduzir os outros homens à condição de objeto, coisas que são utilizadas para o proveito próprio.
O importante é advertir que a resposta que o homem dá um desafio não muda só a realidade com a qual se confronta: a resposta muda o próprio homem, cada vez um pouco mais, e sempre de modo diferente. “Pelo jogo constante destas respostas o homem se transforma no ato mesmo de responder”, diz Paulo Freire.
Na medida em que o homem, integrando-se nas condições de seu contexto de vida, reflete sobre elas e leva respostas aos desafios que se lhe apresentam, cria cultura.
A partir das relações que estabelece com seu mundo, o homem, criando, recriando, decidindo, dinamiza este mundo. Contribui com algo do qual ele é autor... Por este fato cria cultura.
Neste sentido, é lícito dizer que o homem se cultiva e cria a cultura no ato de estabelecer relações, no ato de responder aos desafios que lhe apresenta a natureza, como também, ao mesmo tempo, de criticar, de incorporar a seu próprio ser e de traduzir por uma ação criadora a aquisição da experiência humana feita pelos homens que o rodeiam ou que o precederam.
Não só por suas relações e por suas respostas o homem é criador de cultura, ele é também “fazedor” da história. Na medida em que o ser humano cria e decide, as épocas vão se formando e reformando.
O homem não pode participar ativamente na história, na sociedade, na transformação da realidade, se não é auxiliado a tomar consciência da realidade e de sua própria capacidade para transformá-la.
A realidade não pode ser modificada, senão quando o homem descobre que é modificável e que ele pode fazê-lo.
É preciso, portanto, fazer desta conscientização o primeiro objetivo de toda educação: antes de tudo provocar uma atitude crítica, de reflexão, que comprometa a ação.10
Método
Contradizendo os métodos de alfabetização puramente mecânicos, projetávamos levar a termo um.a alfabetização direta, ligada realmente à democratização da cultura e que servisse de introdução; ou, melhor dizendo, uma experiência susceptível de tornar compatíveis sua existência de trabalhador e o material que lhe era oferecido para aprendizagem. Verdadeiramente, só uma paciência muito grande é capaz de suportar, depois das dificuldades de uma jornada de trabalho, as lições que citam a “asa”: “Pedro viu a asa”; “A asa é do pássaro”; ou as que falam de “Eva e as uvas” a homens que, com freqüência, sabem pouquíssimo sobre Eva e jamais comeram uvas.
Daí, nossa descrença inicial em relação aos abecedários que pretendem oferecer a montagem dos signos gráficos, reduzindo o analfabeto ao estado de objeto e não de sujeito de sua própria alfabetização. Tínhamos, por outro lado, que pensar em limitar o número de palavras, fundamentais, chamadas geradoras, na aprendizagem de uma língua silábica como a nossa.
Não tínhamos necessidade de 40, 50, 80 palavras geradoras, para permitir a compreensão das sílabas de base da língua portuguesa. Seria uma perda de tempo. 15 ou 18 nos pareceram suficientes para o processo de alfabetização pela conscientização.
Fases de Elaboração e Aplicação do Método
Primeira fase: a "descoberta do universo vocabular” dos grupos com os quais se há de trabalhar se efetua no curso de encontros informais com os habitantes do setor que se procura atingir. Não só se retêm as palavras mais carregadas de sentido existencial – e, por causa disto, as de maior conteúdo emocional –, senão também as ex-pressões típicas do povo: formas de falar particulares, palavras ligadas à experiência do grupo, especialmente à experiência profissional.
“Janeiro em Angicos – disse um homem do sertão do Rio Grande do Norte – é muito duro de se viver, porque janeiro é cabra danado parti judiar de nós.”
As palavras geradoras devem nascer desta procura e não de uma seleção que efetuamos no nosso gabinete de trabalho, por mais perfeita que ela seja do ponto de vista técnico.
Segunda fase: Seleção de palavras, dentro do universo vocabular.
Esta seleção deve ser submetida aos seguintes critérios:
a) O da riqueza silábica;
b) O das dificuldades fonéticas. As palavras escolhidas devem responder às dificuldades fonéticas da língua e colocar-se na ordem de dificuldade crescente;
c) O do conteúdo prático da palavra, o que implica procurar o maior compromisso possível da palavra numa realidade de fato, social, cultural, política...
Hoje, conforme o professor Jarbas Maciel, vemos que estes critérios estão contidos no critério semiológico: a melhor palavra geradora é aquela que reúne em si a porcentagem mais alta de critérios sintáticos (possibilidade ou riqueza fonética, grau de dificuldade fonética complexa, possibilidade de manipulação de conjuntos de signos, de sílabas etc.), semânticos (maior ou menor intensidade de relação entre a palavra e o ser que designa), poder de conscientização que a palavra tem potencialmente, ou conjunto de reações sócio-culturais que a palavra gera na pessoa ou no grupo que a utiliza.
Terceira fase: A terceira fase é a criação de situações existenciais típicas do grupo com o qual se trabalha.
Estas situações desempenham o papel de “desafios” apresentados aos grupos. Trata-se de situações problemáticas, codificadas, que levam em si elementos para que sejam descodificados pelos grupos com a colaboração do coordenador. O debate a este propósito – como o que se leva a termo com as situações que nos proporcionam o conceito antropológico da cultura – conduzirá os grupos a “conscientizar-se” para alfabetizar-se.
Estas são as situações locais que abrem perspectivas para a análise de problemas nacionais e regionais. Entre estas perspectivas se situam as palavras geradoras, ordenadas conforme o grau de suas dificuldades fonéticas. Uma palavra geradora pode englobar a situação completa ou referir-se somente a um dos elementos da situação.
Quarta fase: A quarta fase é de elaboração de fichas indicadoras que ajudam os coordenadores do debate em seu trabalho. Tais fichas deverão simplesmente ajudar os coordenadores, não serão uma prescrição rígida e imperativa.
Quinta fase: Consiste na elaboração de fichas nas quais aparecem as famílias fonéticas correspondentes às palavras geradoras.
Uma vez elaborado o material, em forma de diapositivos ou cartazes, constituídas as equipes de supervisores e de coordenadores, devidamente treinados nos debates relativos às situações já elaboradas, e de posse de suas fichas indicadoras, começa o trabalho efetivo de alfabetização.
Os Atos Concretos da Alfabetização
Uma vez projetada a situação, com a indicação da primeira palavra geradora, ou melhor, depois de representar graficamente a expressão oral da percepção do objeto, abre-se o debate.
Quando o grupo, com a colaboração do coordenador, esgotou a análise – processo de descodificação – da situação dada, o educador propõe a visualização da palavra geradora, e não a memorização. Quando se visualiza a palavra e se estabelece o laço semântico entre ela e o objeto a que se refere – representado na situação –, mostra-se ao aluno, por meio de outro diapositivo, a palavra sozinha, sem o objeto correspondente.
Imediatamente depois apresenta-se a mesma palavra separada em sílabas, que o analfabeto, geralmente, identifica como partes. Reconhecidas as partes, na etapa da análise, passa-se à visualização das famílias silábicas que compõem as palavras em estudo.
Estas palavras, estudadas primeiro de forma isolada, são examinadas depois em seu conjunto, o que conduz à identificação das vogais. A ficha, que apresenta as famílias em seu conjunto, foi qualificada pela professora Aurenice Cardoso de “ficha de descoberta”, porque, ao sintetizar por meio dela, o homem descobre o mecanismo de formação das palavras de uma língua silábica como o português, que repousa sobre combinações fonéticas.
Assumindo este mecanismo de maneira crítica e não pela memorização – o que não seria uma apropriação –, o analfabeto começa a estabelecer por si mesmo seu sistema de sinais gráficos.
Desde o primeiro dia, se põe com grande facilidade a criar palavras com as combinações fonéticas postas à sua disposição, graças à separação de uma palavra com três sílabas.
Tornemos a palavra “tijolo” como primeira palavra geradora na “situação” de uma obra em construção. Depois do debate da situação sob todos os aspectos possíveis, estabelece-se a relação semântica entre as palavras e o objeto representado por ela.
A palavra visualizada na situação apresenta-se imediatamente depois sem o objeto. Logo, em sílabas: “tijo-lo”.
A visualização das partes segue o reconhecimento das famílias fonéticas.
A partir da sílaba “ti”, conduz-se o grupo a reconhecer toda a família fonética que resulta da combinação
da consoante inicial com as outras vogais. Depois, o grupo, ao descobrir a segunda família pela visualização de “jo”, chega finalmente ao reconhecimento da terceira. Quando se projeta a família fonética, o grupo reconhece somente a sílaba da palavra visualizada: ta-te-ti-to-tu, ja-je-ji-jo-ju, la-le-li-la-lu.
Tendo reconhecido a sílaba “ti”, da palavra geradora “tijolo”, o grupo compara estas sílabas com outras, o que leva a descobrir que, se é verdade que começam da mesma maneira, no entanto, não podem chamar-se todas “ti”.
O processo é idêntico para as sílabas “jo” e “la” e suas famílias. Uma vez feito o reconhecimento de cada família fonética, os exercícios de leitura fixam as sílabas novas.
Abordamos neste momento o estágio decisivo, o da apresentação simultânea das três famílias na ficha de descobrimento.
ta-te-ti-to-tu
ja-je-ji-jo-ju
la-le-li-lo-lu
Depois de uma leitura horizontal e uma vertical, co-meça a síntese oral. Um a um, todos criam palavras com as combinações possíveis: luta, lajota, jato, juta, lote, tela etc. Alguns, utilizando a, vogal de uma das sílabas, unindo-a a outra e acrescentando uma consoante, formam uma palavra. Outros, como um analfabeto de Brasília, que comoveu a assistência e nela o antigo Ministro de Educação, Paulo de Tarso, a quem o interesse pela educação levava, ao fim de seu dia de trabalho, a assistir aos debates dos Círculos de Cultura, compôs uma frase “tu ja le”, que em bom português seria: “tu já lês”. E isto na primeira tarde de sua alfabetização.
Da Leitura à Escrita
Uma vez terminados os exercícios orais, através dos quais se produz são somente o conhecimento mas também o reconhecimento, sem o qual não há verdadeiro aprendizado, o aluno passa à escrita, e isto desde o primeiro dia. Na tarde seguinte, leva ao círculo, como “tarefa”, todas as palavras que pôde criar pela combinação de fonemas comuns. O que importa, no dia em que põe o pé neste terreno novo, é a descoberta do mecanismo das combinações fonêmicas.
Na experiência realizada no Estado do Rio Grande do Norte, chamou-se “palavras de pensamento” aquelas que tinham significado e “palavras mortas” as que não o tinham. Foram numerosos os que, depois da assimilação do mecanismo fonético e graças à ficha de descoberta, conseguiram escrever as palavras partindo de fonemas complicados que o coordenador ainda não lhes havia apresentado.
Num dos Círculos de Cultura da experiência de Angicos (Rio Grande do Norte), coordenado por minha filha Magdalena, no quinto dia do debate, quando ainda não se retinham senão fonemas simples, um dos participantes foi ao quadro-negro para escrever – disse ele – uma palavra de pensamento. Escreveu: “O povo vai resouver (por resolver) os poblemas (por problemas) do Brasil votando conciente (por consciente).”
Acrescentamos que, nestes casos, os textos eram discutidos em grupos, estudando o seu significado em relação à nossa realidade.
Como explicar que um homem, uns dias antes analfabeto, escreva palavras partindo de fonemas complexos que ainda não estudou? Deve-se a que, havendo dominado o mecanismo das combinações fonéticas, intenta e consegue expressar-se graficamente da maneira como fala. Isto verifica-se em todas as experiências que se realizaram no país, e se estendeu e aprofundou através do Programa Nacional de Alfabetização do Ministério de Educação e Cultura, que coordenávamos naquela época e que desapareceu depois do golpe militar.
Para que a alfabetização não seja puramente mecânica e assunto só de memória, é preciso conduzir os adultos a conscientizar-se primeiro, para que logo se alfabetizem a si mesmos. Conseqüentemente, este método – na medida em que ajuda o homem a aprofundar a consciência de sua problemática e de sua condição de pessoa e, portanto, de sujeito – converte-se para ele em caminho de opção. Neste momento, o homem se politizará a si mesmo.
Quando um ex-analfabeto do município de Angicos, pronunciando um discurso para o presidente Goulart – que sempre nos apoiou com entusiasmo –, declarou que ele não era mais massa e sim povo, fez mais que uma simples frase: afirmou-se a si mesmo, consciente de uma opção. Havia escolhido a participação na decisão, que só o povo possui, e havia renunciado à dimensão emocional das massas. Havia se politizado.
Os temas geradores submetidos à análise dos especialistas deviam ser reduzidos a unidades de aprendizagem (como fizemos com o conceito de cultura e com as situações relacionadas com as palavras geradoras). Havíamos preparado cartazes a partir destas reduções, ou de textos simples que se referissem aos temas originais.
Além disso, elaborando um catálogo de temas reduzidos e de referências bibliográficas, que pusemos à disposição de colégios e universidades, pudemos ampliar o campo de ação da experiência.
Por outro lado, havíamos começado a preparar um material que devia permitir-nos realizar de maneira concreta uma educação na qual havia lugar para o que Aldous Huxley chama “a arte de dissociar idéias”, arte que é o antídoto da forca de domesticação da propaganda. Os alunos deviam discutir as situações – desafios –, desde a simples propaganda comercial à propaganda ideológica, e isto desde a fase de alfabetização.
À medida que os grupos percebem na discussão o que há de enganoso na propaganda – por exemplo, uma marca de cigarros, fumados por uma bela moça de biquini, sorridente e feliz, e que com seu sorriso, sua beleza e seu biquini nada tem a ver com os cigarros –, descobrem na primeira fase a diferença entre educação e propaganda. Preparam-se assim para perceber os mesmos enganos na propaganda ideológica ou política, no uso de “slogans”.
Capacitados para a crítica, estarão armados para a “dissociação de idéias” evocada por Huxley.11
No Brasil, quando pensava nas possibilidade de desenvolver um método com o qual fosse possível para os analfabetos aprender facilmente a ler e escrever, percebi que a melhor maneira não era desafiar o espeto crítico, a consciência do homem, mas (e é muito interessante ver como. mudei) procurar introduzir, na consciência das pessoas, alguns símbolos associados a palavras. E, em um segundo momento, desafiá-las criticamente para redescobrir a associação entre certos símbolos e as palavras, e assim apreendê-las.
Lembro-me que pedi ajuda a uma mulher de idade, muito amável, uma camponesa analfabeta que trabalhava em nossa casa como cozinheira. Um domingo, lhe disse: “Olha, Maria, eu procuro uma maneira nova de ensinar a ler aos que não sabem e tenho necessidade da sua ajuda. Você quer ajudar-me?” Ela aceitou. Levei-a à minha biblioteca e projetei um desenho com um menino e abaixo do desenho estava escrita a palavra “menino”. Perguntei-lhe: “Maria, o que é isso?” E ela: “um menino”. Projetei outro desenho com o mesmo menino, mas ortograficamente “menino” estava escrito sem a sílaba do meio ("meno”, em lugar de menino). Perguntei-lhe: “Maria, falta alguma coisa?” Ela me disse: “Oh, sim, falta. o do meio.” Sorrindo, mostrei-lhe outro desenho com um menino, mas com a palavra escrita sem m última sílaba (somente “meni”), e lhe perguntei outra vez: “Falta algo?” “Sim, o final.”
Discutimos cerca de uns 15 minutos sobre as diferentes possibilidades com menino, meno, nino, meni etc., e em cada ocasião ela descobria a parte da palavra que faltava. Par fim, me disse: “Estou cansada. É muito interessante, mas estou cansada,” Podia trabalhar, real-mente, o dia todo e, sem dúvida, depois de dez ou quinze minutos de um exercício intelectual, cansava-se. É compreensível. Ao terminar perguntou-me: “Você acredita que pude ajudá-lo?” Respondi-lhe: “Sim, ajudou-me muito, porque mudou minha maneira de pensar.” E ela: “Obrigada.” É formidável o poder do amor.
Deixou então minha biblioteca, para voltar cinco minutos depois com uma xícara de café. Quando me vi sozinho, voltei a pensar em minha primeira hipótese em função desta experiência. Descobri que faltava desafiar, desde o início, a intencionalidade da consciência, ou melhor, o poder de reflexão da consciência, e não como eu pensava antes. Creio que tudo isto é um bom exemplo para mostrar como é preciso refletir, constantemente, e mudar o rumo da investigação em que estamos compro-metidos. Assim, com este simples caso de Maria, me convenci de que era necessário proceder de outro modo, que faltava desafiar a consciência crítica, desde o começo. Alguns dias depois, comecei a trabalhar com um grupo de cinco homens, mas, desta vez, desafiando-os de maneira crítica, desde o começo.12
Aplicação
A concepção de liberdade, expressa por Paulo Freire, é a matriz que dd sentido a uma educação que não pode ser efetiva e eficaz senão na medida em que os educandos nela tomem parte de maneira livre e crítica. Este é um dos princípios essenciais da organização dos Círculos de Cultura, unidade de ensino que substitui a escola tradicional e reúne um coordenador com algumas dezenas de homens do povo, num trabalho comum de conquista da linguagem. O coordenador não exerce as funções de “professor”, a condição essencial da tarefa é o diálogo: "Coordenar, jamais impor sua influência.”
O respeito à liberdade dos alunos – que não são qualificados de analfabetos, mas de homens que aprendem a ler – existe muita antes da criação do Círculo de Cultura. Já na etapa da procura do vocabulário popular, durante a fase da preparação do curso, procura-se tanto quanto possível a intervenção do povo na elaboração do programa e a definição das palavras geradoras cuja discussão permitirá, àquele que aprende a ler, apropriar-se de sua linguagem ao mesmo tempo que expressa uma situação real – uma “situação-desafio”, como diz Paulo Freire. A alfabetização e a conscientização são inseparáveis. Todo aprendizado deve estar intimamente associado à tomada de consciência de uma situação real e vivida pelo aluno.
Para Paulo Freire, a aprendizagem é já uma maneira de tomar consciência do real e, portanto, não pode efetuar-se a não ser no seio desta tomada de consciência
Como chegar a isto? Utilizando um método ativo de educação, um método de diálogo – crítico e que convide à crítica –, modificando o conteúdo dos programas de educação.
Freire e sua equipe pensaram que a primeira dimensão deste conteúdo novo, com o qual poderiam ajudar o analfabeto – antes ainda de começar sua alfabetização – a passar da compreensão mágica e ingênua à compreensão crítica, era o conceito antropológico da cultura.
Consideraram que era indispensável, para realizar esta transformação essencial, fazer o homem simples percorrer todo um caminho através do qual descobrisse e tornasse consciência de:
– a existência de dois mundos, o da natureza e o da cultura;
– o papel ativo do homem na realidade e com ela;
– o papel de mediação, que joga a natureza nas relações e nas comunicações entre os homens;
– a cultura como resultado de seu trabalho, de seu esforço criador e recriador;
– a cultura como aquisição sistemática da experiência humana;
– a cultura como incorporação – crítica e criadora – e não como uma justaposição de informações ou de prescrições superadas;
– a democratização da cultura como dimensão da democratização fundamental;
– a aprendizagem da leitura e da escrita como chaves com as quais o analfabeto começará sua introdução no mundo da comunicação escrita;
- o papel do homem, que é o de sujeito e não de simples objeto.
Assim, a primeira situação, que trata de excitar a curiosidade do analfabeto e procura fazê-lo distinguir o mundo da natureza do mundo da cultura, apresenta um homem simples. Ao seu redor, seres da natureza (árvores, sol, pássaros...) e objetos da cultura (casa, poço, vestidos, ferramentas etc.), além de uma mulher e uma criança. Com a ajuda de um animador, estabelece-se um longo debate. Com perguntas simples, como: "Quem fez o poço? Par que o fez? Como? Quando o fez?”, perguntas que se repetem com relação aos diferentes elementos da situação, surgem dois conceitos fundamentais: o de “necessidade” e o de “trabalho”. Explica-se, então, a cultura num primeiro nível: o da subsistência.
O analfabeto chega a compreender que a falta de conhecimento é relativa e que a ignorância absoluta não existe. O simples fato de ser, penetra o homem de 'onhecimento, controle e criatividade.
Novamente, o coordenador faz perguntas: “Por que dançam? Quem inventou -a dança? Por que os homens criaram a música? Aquele que compõe uma ‘cueca’ pode ser um grande compositor?” A situação tende a mostrar que quem compõe música popular é tão grande artista como um célebre compositor.
Com o oitavo desenho entramos propriamente na fase da alfabetização. Organiza-se uma reunião ao redor de uma palavra e de um desenho. O grupo aprende que se pode simbolizar uma experiência vivida desenhando-a ou escrevendo-a. No lugar de uma casa luxuosa do médio burguês, comum nas cartilhas. encontramos uma casa humilde do Chile, e uma família com as características típicas da classe inferior. À esquerda, uma casa um pouco mais modesta ainda.
O coordenador do Círculo de Cultura guia o grupo na reflexão e na discussão sobre o sentido de “casa”, utilizando temas tais como a necessidade de um abrigo confortável para a vida familiar, o problema da habitação nos diferentes países e regiões e os problemas da habitação em relação à urbanização. Para desenvolver uma atitude crítica ante os acontecimentos diários, fazem-se perguntas como as seguintes: “Todos os chilenos têm habitações convenientes? Onde faltam casas? Por quê? R suficiente o sistema de poupança e de empréstimo para a aquisição de uma casa?"
No desenho número nove aparece uma situação diferente: uma “fábrica” com o letreiro que diz: “Não há vagas.” A expressão dos rostos revela, provavelmente, uma experiência que é real para muitos. Ainda que a palavra dirija-se a um grupo de camponeses, todos têm sua interpretação pessoal do sentido de “fábrica”, As perguntas para a discussão são as seguintes: “Onde são feitas as roupas que usamos, os instrumentos de que aos servimos para trabalhar, o papel e o lápis com que escrevemos? Uma fábrica intervém na produção de nosso alimento e na construção de nossas casas? Por que agora a gente não faz a maior parte dos artigos de que necessitamos como se fazia antes? Por que os países têm necessidade de industrializar-se? O Chile pode se industrializar mais? Que necessita um país para desenvolver-se do ponto de vista industrial? Que indústrias têm maiores possibilidades em nosso país? Recebem as zonas rurais influência da expansão industrial? Contribuem estas zonas para o progresso? Pode-se industrializar a agricultura e a pecuária?
A última situação gira ao redor da dimensão da cultura como aquisição sistemática da experiência humana. Daí passa-se ao debate sobre a democratização da cultura, com o que se abrem as perspectivas da alfabetização.
Estes debates, realizados nos Círculos de Cultura, com a ajuda dos educadores especialmente preparados para este trabalho de animação, revelam-se imediatamente como um meio bem poderoso e eficaz de conscientização, capaz de transformar radicalmente a atitude frente à vida.
Muitos dos que participaram deles afirmaram, durante os debates e as situações, que "não lhes era mostrado nada de novo, mas que se lhes refrescava a memória”, e isto os fazia felizes.
“Faço sapatos – disse uma vez um deles – e agora descobri que tenho o mesmo valor que o homem instruído que faz livros.”
“Amanhã – afirmou outro a propósito de uma discussão sobre o conceito de cultura – vou começar meu trabalho com a cabeça bem alta.” Era um varredor de rua que havia descoberto o valor de sua pessoa e a dignidade de seu trabalho.
PRÁXIS DA LIBERTAÇÃO
Três palavras chaves
A Opressão
Quem, melhor que os oprimidos, está preparado para compreender o terrível significado de uma sociedade opressora? Quem sofre os efeitos da opressão com mais intensidade que os oprimidos? Quem com mais clareza que eles pode captar a necessidade da libertação? Os oprimidos não obterão a liberdade por acaso, senão procurando-a em sua práxis e reconhecendo nela que é necessário lutar para consegui-la. E esta luta, por causa da finalidade que lhe dão os oprimidos, representará realmente um ato de amor, oposto à falta de amor que se encontra no coração da violência dos opressores, falta de amor ainda nos casos em que se reveste de falsa generosidade.
Mas quase sempre, durante a fase inicial do combate, em lugar de lutar pela liberdade, os oprimidos tendem a converter-se eles mesmos em opressores ou em “subopressores”.
É raro o caso de um camponês, promovido a chefe, que não seja mais tirano em relação a seus antigos camaradas que o próprio proprietário. Isto deve-se a que o contexto da situação do camponês (a opressão) permanece sem mudança. Neste exemplo, o chefe, para assegurar seu trabalho, tem de ser tão duro como o proprietário ou ainda mais. Isto ilustra nossa afirmação, segundo a qual, durante a fase inicial da luta, os oprimidos encontram no opressor seu “tipo de homem”.
Somente os oprimidos podem libertar os seus opressores, libertando-se a si mesmos. Eles, enquanto classe opressora, não podem nem libertar-se, nem libertar os outros. É pois essencial que os oprimidos levem a termo um combate que resolva a contradição em que estão presos, e a contradição não será resolvida senão pela aparição de um “homem novo” : nem o opressor, nem o oprimido, mas um homem em fase de libertação.
A Dependência
a tarefa fundamental dos países sub-desenvolvidos – o compromisso histórico de seus povos – é superar sua “situação-limite” de sociedades dependentes, para converterem-se em “seres-para-si-mesmos”. Sem isto estas sociedades continuarão a experiência da “cultura do silêncio”, que, havendo resultado das estruturas de dependência, reforça estas mesmas estruturas. Há, portanto, uma relação necessária entre dependência e “cultura do silêncio”. Ser silencioso não é não ter uma palavra autêntica, mas seguir as prescrições daqueles que falam e impõem sua voz. Alcançar a estado de “ser-para-si-mesmos” representa para as sociedades subdesenvolvidas o que eu chamo a possibilidade “não-experimentada”.
Não é possível compreender a cultura do silêncio senão vista como uma totalidade que faz dela parte de um conjunto maior. Neste conjunto de maior magnitude devemos também reconhecer a cultura ou as culturas que determinam o caminho da “cultura do silêncio”. Não queremos dizer que a “cultura do silêncio” seja à maneira de entidade, criada pela “metrópole” em laboratórios especializados e levada ao Terceiro Mundo. Tampouco é verdade que a “cultura do silêncio” nasça por geração espontânea. Na realidade, a “cultura do silêncio” nasce da relação do Terceiro Mundo com a metrópole. “Não é o dominador que constrói uma cultura e a impõe aos dominados. Ela é o resultado de relações estruturais entre os dominados e o dominador.” Assim, para compreender a “cultura do silêncio”, é necessário primeiro fazer uma análise da dependência como fenômeno relacional que dá origem a diferentes formas de ser, de pensar, de expressar-se, as da cultura do silêncio e as da cultura que “tem uma palavra”...
A sociedade dependente é, por definição, uma sociedade silenciosa. Sua voz não é uma voz aut8ntica, mas um simples eco da voz da metrópole.
De todas as maneiras, a metrópole fala e a sociedade dependente escuta.
O silêncio da sociedade-objeto, em relação à sociedade-dirigente, repete-se nas relações que se estabelecem no seio da mesma sociedade-objeto. Suas elites no poder, silenciosas frente à metrópole, fazem calar, por sua vez, ao povo. E somente quando o povo de uma sociedade dependente rompe a “cultura do silêncio” e conquista o direito da palavra – ou melhor, quando as mudanças radicais de estrutura transformam a sociedade dependente –, é quando uma tal sociedade, em seu conjunto, pode deixar de ser silenciosa em relação à sociedade dirigente.
Por aí as massas começarão a sair de seu silêncio, assumindo atitudes cada vez mais exigentes. Na medida em que vão sendo satisfeitas suas exigências, as massas tenderão não só a multiplicá-las, como também a modificar a natureza das mesmas.
Um tipo de consciência corresponde à realidade concreta destas sociedades em estado de dependência. Uma consciência historicamente condicionada pelas estruturas sociais. A principal característica desta consciência – tão dependente como é a sociedade da estrutura a que se conforma – é sua “quase-aderência” à realidade objetiva ou sua “quase-imersão” na realidade. A consciência dominada não se distancia suficientemente da realidade para objetivá-la, a fim de conhecê-la de maneira crítica.
A este tipo de consciência chamamos "semi-intransitiva”.
A consciência semi-intransitiva é característica das estruturas fechadas.
A Marginalidade
A percepção não-estrutural do analfabetismo tem revelado uma visão errônea dos analfabetos, como homens marginalizados. Aqueles que os consideram como marginalizados devem, todavia, reconhecer a existência de uma realidade em relação à qual os analfabetos são marginalizados: não somente no espaço físico, mas realidades históricas, sociais, culturais e econômicas; ou seja a dimensão estrutural da realidade. Desta maneira, deve-se considerar os analfabetos como seres “fora de”, “à margem de” algo, já que é impossível estarem marginalizados sem relação a uma coisa. Mas, estar “fora de”, “à margem de”, implica necessariamente num movimento daquele que se diz marginalizado em direção ao que é o centro em relação à periferia. Este movimento, que é uma ação, pressupõe não somente um agente, como também a existência de algumas razões. Se se admite a existência de homens “fora de”, ou “à margem” da realidade estrutural, parece legítimo perguntar-se quem é o autor deste movimento do centro da estrutura para sua margem. São aqueles que se dizem marginalizados – entre eles os analfabetos – que decidem deslocar-se para a periferia da sociedade?
Os educadores seriam benevolentes conselheiros que percorreriam os bairros da cidade à procura dos analfabetos escapados da vida reta, para fazê-los encontrar a felicidade, entregando-lhes o presente da palavra.
Dentro de tal visão, infelizmente muito difundida, os programas de alfabetização não podem jamais ser esforças para alcançar a liberdade. Nunca colocarão em questão a própria realidade que priva os homens do direito de falar – não somente aos analfabetos, como também a todos aqueles que são tratados como objeto numa relação de dependência. Na realidade, estes homens – analfabetos ou não – não são marginalizados. Repetimos: não estão “fora de”, são seres “para o outro”. Logo, a solução de seu problema não é converterem-se em “seres no interior de”, mas em homens que se libertam, porque não são homens à margem da estrutura, mas homens oprimidos no interior desta mesma estrutura. Alienados, não podem superar sua dependência incorporando-se à estrutura que é responsável por esta mesma dependência. Não há outro caminho para a humanização – a sua própria e a dos outros –, a não ser uma autêntica transformação da estrutura desumanizante.
Sob esta perspectiva, o analfabeto não é então uma pessoa que vive à margem da sociedade, um homem marginal, mas apenas um representante dos extratos dominados da sociedade, em oposição consciente ou inconsciente àqueles que, no interior da estrutura, tratam-no como uma coisa. Assim, quando se ensina os homens a ler e a escrever, não se trata de um assunto intranscendente de ba, be, bi, bo, bu, da memorização de uma palavra alienada, mas de uma difícil aprendizagem para “nomear o mundo”.
Nova Relação Pedagógica
Nas sociedades em que a dinâmica estrutural conduz à escravização das consciências, “a pedagogia dominante é a pedagogia das classes dominantes”. Porque, pelo duplo mecanismo da assimilação, ou melhor, da introjeção, a pedagogia que impõe-se às classes dominadas como “legítima” – como fazendo parte do saber oficial – provoca ao mesmo tempo o reconhecimento por parte das classes dominadas da “ilegitimidade” de sua própria cultura. Encontra-se, assim, ao nível da educação, esta “alienação da ignorância’ com u qual Paulo Freire tem freqüentemente experiência em suas investigações: o pobre absolutiza sua própria ignorância em proveito do “patrão” e “daqueles que são como o patrão”, que se convertem em juízes e garantidores de todo saber.
Deste modo, a opressão encontra na lógica do sistema de ensino atual um instrumento de eleição para fazer aceitar e prolongar o “status quo”; quer dizer, sob pretexto de melhorar e de “integrar socialmente”, a ação pedagógica contribui para aprofundar e legalizar “um abismo profundo entre as classes”.
Uma análise exata das relações professor – aluno em todos os níveis, na escola ou fora dela, revela seu caráter essencialmente narrativo. Esta relação supõe um sujeito narrador: o professor, e supõe objetos pacientes que escutam: os alunos. O conteúdo, seja de valores ou de dimensões empíricas da realidade, tem tendência a converter-se em algo sem vida e a petrificar-se uma vez enunciado. A educação padece da doença da narração.
O professor fala da realidade como se esta fosse sem movimento, estática, separada em compartimentos e previsível; ou então, fala de um tema estranho à experiência existencial dos estudantes: neste caso sua tarefa é “encher” os alunos do conteúdo da narração, conteúdo alheio à realidade, separado da totalidade que a gerou e poderia dar-lhe sentido.
Assim, a educação passa a ser “o ato de depositar”, no qual os alunos são os depósitos e o professor aquele aquele que deposita. Em lugar de comunicar, o professor dá comunicados que os alunos recebem pacientemente, aprendem e repetem. É a concepção “acumulativa” da educação (concepção bancária).
.. Na concepção bancária da educação, o conhecimento é um dom concedido por aqueles que se consideram como seus possuidores àqueles que eles consideram que nada sabem. Projetar uma ignorância absoluta sobre os outros é característica de uma ideologia de opressão. É uma negação da educação é do conhecimento como processo de procura. O professor apresenta-se a seus alunos como seu “contrário” necessário: considerando que a ignorância deles é absoluta, justifica sua própria existência. Os alunos, alienados como o escravo na dialética hegeliana, aceitam sua ignorância como justificativa para a existência do professor, mas diferentemente do escravo, jamais descobrem que eles educam o professor.
...A educação bancária mantém e ainda reforça as contradições através das práticas e das atitudes seguintes, que refletem a sociedade opressora em seu conjunto:
a) o professor ensina, os alunos são ensinados;
b) o professor sabe tudo, os alunos nada sabem;
c) o professor pensa para si e para os estudantes;
d) o professor fala e os alunos escutam;
e) o professor estabelece a disciplina e os alunos são disciplinados;
f) o professor escolhe, impõe sua opção, os alunos submetem-se;
g) o professor atua e os alunos trem a ilusão de atuar graças à ação do professor;
h) o professor escolhe o conteúdo do programa e os alunos – que não foram consultados – adaptam-se;
i) o professor confunde a autoridade do conhecimento com sua própria autoridade profissional, que ele opõe à liberdade dos alunos;
j) o professor é sujeito do processo de formação enquanto que os alunos são simples objetos dele.
Aqueles que utilizam o método bancário, conscientemente ou não – porque há inúmeros professores “bancários”, bem-intecionados, que não se dão conta de que servem somente para desumanizar –, não percebem que os próprios depósitos contêm contradições sobre a realidade.
Mas o educador humanista revolucionário não pode esperar que esta possibilidade se apresente. Desde o começo, seus esforços devem corresponder com os dos alunos para comprometer-se num pensamento crítico e numa procura da mútua humanização. Seus esforços devem caminhar junto com uma profunda confiança nos homens e em seu poder criador. Para obter este resultado deve colocar-se ao nível dos alunos em suas relações com eles.
Em resumo: a teoria e a prática bancária, enquanto forças de imobilização e de fixação, não reconhecem os homens como seres históricos; a teoria e a prática críticas tornam como ponto de partida a historicidade do homem.
A educação crítica considera os homens como seres em devir, como seres inacabados, incompletos em uma realidade igualmente inacabada e juntamente com ela. Por oposição a outros animais, que são inacabados mas não históricos, os homens sabem-se incompletos. Os homens têm consciência de que são incompletos, e assim, nesse estar inacabados e na consciência que disso têm, encontram-se as raízes mesmas da educação como fenômeno puramente humano. O caráter inacabado dos homens e o caráter evolutivo da realidade exigem que a educação seja 'uma atividade contínua. A educação é, deste modo, continuamente refeita pela práxis. Para ser, deve chegar a ser. Sua duração – no sentido bergsoniano da palavra – encontra-se no jogo dos contrários: estabilidade e mudança. O método bancário põe o acento sobre a estabilidade e chega a ser reacionário. A educação problematizadora – que não aceita nem um presente bem conduzido, nem um futuro predeterminado – enraíza-se no presente dinâmico e chega a ser revolucionária.
A educação crítica é a "futuridade” revolucionária. Ela é profética – e, como tal, portadora de esperança – e corresponde à natureza histórica do homem. Ela afirma que os homens são seres que se superam, que vão para a frente e olham para o futuro, seres para os quais a imobilidade representa uma ameaça fatal, para os quais ver o passado não deve ser mais que um meio para compreender claramente quem são e o que são, a fim de construir o futuro com mais sabedoria. Ela se identifica, portanto, com o movimento que compromete os homens como seres conscientes de sua limitação, movimento que é histórico e que tem o seu ponto de partida, o seu sujeito, o seu objetivo.
O diálogo é o encontro entre os homens, mediatizados pelo mundo, para designá-lo.
Se ao dizer suas palavras, ao chamar ao mundo, os homens o transformam, o diálogo impõe-se como o caminho pelo qual os homens encontram seu significado enquanto homens; o diálogo é, pois, uma necessidade existencial.
“O homem de diálogo” é crítico e sabe que embora tenha e poder de criar e de transformar tudo, numa situação completa de alienação, pode-se impedir os homens de fazer uso deste poder.
O método correto é o diálogo. A convicção dos oprimidos de que devem lutar por sua libertação não é um presente dos líderes revolucionários, mas o resultado de sua própria conscientização.
Ação Cultural e Revolução Cultural
Uma pedagogia utópica de denúncia e de anúncio, como a nossa, tem de ser um ato de conhecimento da realidade denunciada, ao nível da alfabetização e da pós-alfabetização, que constituem, em cada caso, uma ação cultural. Por isto se acentua a problematização contínua das situações existenciais dos educandos tal como são apresentadas nas imagens codificadas. Quanto mais progride a problematização, mais penetram os sujeitos na essência do objeto problematizado e mais capazes são de “desvelar” esta essência. Na medida em que a “desvelam”, se aprofunda sua consciência nascente, conduzindo assim à conscientização da situação pelas classes pobres.
Por isso a conscientização é um projeto irrealizável para as direitas. A direita é, por natureza, incapaz de ser utópica e não pode, portanto, praticar uma forma de ação cultural que conduziria à conscientização. Não se pode dar conscientização ao povo sem uma denúncia radical das estruturas desumanizantes, que marche junto com a proclamação de uma nova realidade que pode ser criada pelos homens. A direita não pode desmascarar-se; não pode também dar ao povo os meios de desmascará-la mais do que ela deseja. Quando a consciência popular se esclarece, sua própria consciência aumenta, mas esta forma de conscientização não pode jamais se transformar numa práxis que conduza à conscientização das pessoas. Não pode haver conscientização sem denúncia das estruturas injustas, o que não se pode esperar da direita. Também não pode haver conscientização popular para a dominação. Somente para a dominação a direita inventa novas formas de ação cultural.
Assim, os dois tipos de ação cultural são antagônicos.
Enquanto a ação cultural para a liberdade se caracteriza pelo diálogo e seu fim principal é conscientizar as massas, a ação cultural para a dominação se opõe ao diálogo e serve para domesticá-las.
Para terminar, expliquemos as razões pelas quais falamos de ação cultural e revolução cultural como de momentos dísticos do processo revolucionário. A ação cultural para a liberdade empreende-se contra a elite dominadora do poder, enquanto que a revolução cultural desenvolve-se em harmonia com o regime revolucionário, apesar de isto não significar que esteja subordinada ao poder revolucionário. Toda revolução cultural apresenta a liberdade como finalidade. Ao contrário, a ação cultural, se for conduzida por um regime opressor, pode ser uma estratégia de dominação: nesse caso jamais chegará a ser revolução cultural.
Perguntas para Estudos da AP 1
Considere as citações abaixo, retiradas do Livro Conscientização, e discuta-as.
1) (...) “a educação, como prática da liberdade é um ato de conhecimento, uma aproximação crítica da realidade.”
Para Freire, de acordo com a pedagogia da liberdade, preparar para a democracia não pode significar somente converter o analfabeto em eleitor, condicionando-o às alternativas de um esquema de poder já existente. Uma educação deve preparar, ao mesmo tempo, para um juízo crítico das alternativas propostas pela elite, e dar a possibilidade de escolher o próprio caminho.
2) “A conscientização, como atitude crítica dos homens na história, não terminará jamais.”
De acordo com Freire, Conscientização é um compromisso histórico. É também consciência histórica: é inserção crítica na história, implica que os homens assumam o papel de sujeitos que fazem e refazem o mundo. Exige que os homens criem sua existência com um material que a vida lhes oferece...
A conscientização não está baseada sobre a consciência, de um lado, e o mundo, de outro; por outra parte, não pretende uma separação. Ao contrário, está baseada na relação consciência – mundo.
3) “Pensávamos em uma alfabetização que fosse ao mesmo tempo um ato de criação, capaz de gerar outros atos criadores; uma alfabetização na qual o homem, que não é passivo e nem objeto, desenvolvesse a atividade e a vivacidade da invenção e da reinvenção, características dos estados de procura.”
Contradizendo os métodos de alfabetização puramente mecânicos, projetávamos levar a termo uma alfabetização direta, ligada realmente à democratização da cultura e que servisse de introdução; ou, melhor dizendo, uma experiência susceptível de tornar compatíveis sua existência de trabalhador e o material que lhe era oferecido para aprendizagem.
4) Faltando uma tal reflexão sobre o homem, corre-se o risco de adorar métodos educativos e maneiras de atuar que reduzem o homem à condição de objeto.
Para ser válida, toda educação, toda ação educativa deve necessariamente estar precedida de uma reflexão sobre o homem e de uma análise do meio de vida concreto do homem a quem queremos educar (ou melhor dito: a quem queremos ajudar a educar-se).
5) Para Freire, a vocação do homem é a de ser sujeito e não objeto.(...) O homem é um ser de raízes espaço-temporais.
Para ser válida, a educação deve considerar a vocação ontológica do homem – vocação de ser sujeito – e as condições em que ele vive: em tal lugar exato, em tal momento, em tal contexto.
6 ) “A educação não é um instrumento válido se não estabelece uma relação dialética com o contexto da sociedade ao qual o homem está radicado.”
Mais exatamente, para ser instrumento válido, a educação deve ajudar o homem, a partir de tudo o que constitui sua vida, a chegar a ser sujeito.(...) O homem chega a ser sujeito por uma reflexão sobre sua situação, sobre seu ambiente concreto.
Quanto mais refletir sobre a realidade, sobre sua situação concreta, mais emerge, plenamente consciente, comprometido, pronto a intervir na realidade para mudá-la.
7 ) O homem, pondo em prática sua capacidade de discernir, descobre-se frente a esta realidade que não lhe é somente exterior (... não pode, por outro lado, ter relações mais que com algo ou alguém exterior a si mesmo, nunca consigo mesmo), mas que o desafia, o provoca.
O importante é advertir que a resposta que o homem dá um desafio não muda só a realidade com a qual se confronta: a resposta muda o próprio homem, cada vez um pouco mais, e sempre de modo diferente. “Pelo jogo constante destas respostas o homem se transforma no ato mesmo de responder”, diz Paulo Freire.
8 ) Na medida em que o homem, integrando-se nas condições de seu contexto de vida, reflete sobre elas e leva respostas aos desafios que se lhe apresentam, cria cultura.
A partir das relações que estabelece com seu mundo, o homem, criando, recriando, decidindo, dinamiza este mundo. Contribui com algo do qual ele é autor... Por este fato cria cultura.
Concluindo
O objetivo da Conscientização da Educação, segundo Freire, é provocar uma atitude crítica, de reflexão, que comprometa a ação.
Dois resumos postados sobre PEDAGOGIA DO OPRIMIDO: Um mais sucinto (netsaber) e outro mais analítico (Jeane Vanessa)
Escrito no período em que o autor esteve exilado de seu país, o Brasil, durante o período da Ditadura Militar, o livro oferece um mergulho no pensamento de Paulo Freire sobre seu modo de ver e ler o mundo. Neste livro Paulo Freire esboça caminhos sociais rumo a uma sociedade livre através da extinção da relação de opressão presentes no sistema capitalista. Para Freire, só a libertação dos opressores, feita pela movimentação e conscientização dos oprimidos, poderia ser o elo propulsor para construir uma sociedade de iguais.
Neste sentido, a educação aparece com o papel central para efetivar o seu pensamento, pois que através de uma educação libertária, o oprimido poderia tomar consciência de sua situação e buscar sua liberdade bem como a de seu opressor. Para tal, propõe que o educador conheça em profundidade cada comunidade que irá educar, conheça a realidade e as palavras que são significativas para cada grupo de pessoas. Desta forma, as palavras que serão ensinadas na escrita e na leitura, são justamente as que fazem parte do cotidiano destas pessoas.
Assim, Freire acredita que ao conhecer a sua palavra e transformá-la em ação e posterior reflexão, o oprimido passaria de um estágio ingênuo para um estado consciente de sua situação social e tentaria suplantá-la.
http://resumos.netsaber.com.br
PEDAGOGIA DO OPRIMIDO (Resumo)
Jeane Vanessa Santos Silva*
Graduada em filosofia pela Universidade Federal de Sergipe e Mestranda em Filosofia Analítica do Programa de Pós Graduação da Universidade Federal da Paraíba; também faz parte do Grupo de Estudos sobre Conhecimento e Ciência (GE2C).
Paulo Freire é caracterizado com um pensador que se comprometeu, além das idéias, com a própria vida, com a própria existência; na Pedagogia do Oprimido ele nos apresenta sua experiência cativada no exílio durante cinco anos, bem como nos mostra o papel conscientizador da educação numa ação libertadora do próprio "medo da liberdade".Para Paulo Freire vivemos numa sociedade dividida em classes, sendo que os privilégios de uns impedem que a maioria usufrua dos bens produzidos e, coloca como um desses bens produzidos e necessários pata concretizar a vocação necessária do ser mais, a educação, da qual é excluída grande parte da população do Terceiro Mundo.Refere-se então a dois tipos de pedagogia: a pedagogia dos opressores, onde a educação existe como uma prática de dominação e a pedagogia do oprimido que precisa ser realizada para que surja uma educação com prática de liberdade.
O movimento da liberdade deve surgir e partir dos próprios oprimidos, e a pedagogia decorrente será gerada nos homens e não para os homens; vê-se que não é suficiente que o oprimido tenha consciência crítica da opressão, mas, que se disponha a transformar essa realidade, trata-se de um trabalho de conscientização e politização. A violência dos opressores é gerada por uma ordem que se posiciona injustamente sendo resultado de um processo histórico de desumanização.Esta desumanização dá margem ao surgimento da luta pelo direito de cada ser humano, a luta pela liberdade trabalhista, e pela afirmação do homem enquanto indivíduo possuidor destes direitos.
Em relação à definição de oprimidos e opressores pode haver algumas contradições; o que torna os opressores desumanizados é sua violência, e essa violência faz com que os oprimidos tendam a reagir lutando contra quem os oprime, contra quem os fez menos.Essa luta só adquire sentido quando o ser menos, ao buscar sua humanização, não se reconhece opressor devolvendo a quem o oprimiu tal violência.A libertação se dá á medida que o oprimido reconquista sua humanidade em ambos os papéis que possivelmente ocupa o do ser mais e o do ser menos.
Toda a Pedagogia do Oprimido se apresenta como um texto problematizador, que explicita a própria teoria da educação do homem; essa teoria da educação se reflete em generosidade verdadeira e humanista podendo alcançar o objetivo da libertação.Só unindo teoria e prática essa libertação pedagógica será possível, além disto, quando os líderes de uma revolução estabelecem uma relação dialógica, ao contrário de tentar sobrepor-se aos oprimidos querendo mantê-los como quase "coisas", isso se dá efetivamente.A pedagogia que parte de interesses individuais, a pedagogia "humanitarista", que está repleta de opressores que se disfarçam de generosos, essa pedagogia promove e constrói a desumanização.Quando os oprimidos se reconhecem como seus próprios refazedores permanentes é porque foram capazes de alcançar na prática o saber da realidade.Esta presença dos oprimidos na busca de sua libertação mesma é, assim como deve ser, um engajamento, desta forma esta atitude se configura como mais que uma pseudo-participação.
Paulo Freire também estabelece uma diferença crucial quando trata de educação bancária e educação libertadora.A pedagogia dominante é fundamentada em uma concepção bancária de educação (predomina o discurso e a prática, na qual, quem é o sujeito da educação é o educador, sendo os educandos como vasilhas a serem enchidas; o educador deposita "comunicados", que estes, recebem, memorizam e repetem), da qual deriva uma prática totalmente verbalista, dirigida para a transmissão e avaliação de conhecimentos abstratos, numa relação vertical, o saber é dado, fornecido de cima pra baixo, e autoritária, pois manda quem sabe.Na educação bancária o educador é sempre o que sabe, enquanto os educandos serão os que não sabem. A rigidez destas posições nega a educação e o conhecimento como processo de busca; educador é o sujeito do processo enquanto o educando o mero objeto.Desta maneira o educando, em sua passividade, torna-se apenas um objeto receptor numa falsa pressuposição de um mundo harmonioso, no qual não há contradições.
O método freireano não ensina a mera repetição de palavras, mas, a despeito disto, coloca o educando numa posição de poder re-existenciar criticamente as palavras de seu mundo.É a palavra que o homem constrói seu mundo e se diferencia dos animais.Aprender a escrever sua vida é o principal e mais exato sentido da alfabetização, aprender a escrever sua própria vida enquanto autor e testemunha constituindo historicamente sua forma e sua consciência se fazendo reflexivamente responsável pela história.
Enquanto a educação bancária é vista como uma modalidade em que o educador é o único detentor do conhecimento e o educando é vaso vazio a ser preenchido pela sabedoria do mestre, na educação libertadora, ao contrário, há interação entre educando e educador onde o ensino e a aprendizagem partem, ambos, de ambos os lados.Quem ensina aprende e quem aprende ensina simultaneamente. Nesta educação problematizadora proposta por Paulo Freire o conhecimento não é transferido do educador para o educando, mas, a despeito disto, ocorre um compartilhamento de experiências onde se encontram as condições necessárias para a construção de seres críticos, no decorrer do diálogo com o educador, por sua vez, também ser crítico.
Dentro da situação concreta de opressão e oprimidos, a auto-desvalia é uma das características do oprimido, que resulta da introjeção que fazem eles da visão que deles tem os opressores. De tanto ouvirem de si mesmos que são incapazes, indolentes, que não sabem nada, que não podem saber, acabam por se convencer de sua "incapacidade".Quando isto efetivamente ocorre o mundo do oprimido não é visto a partir de uma nova perspectiva que valoriza a verdade das palavras numa mediatização dos sujeitos conhecedores, que, por sua vez, não culminam em sua própria humanização.
O diálogo não é um produto histórico, é a própria historicização, é ele, pois, o movimento constitutivo da consciência que abrindo-se para a infinitude, vence intencionalmente as fronteiras da finitude e, incessantemente, busca reencontrar-se além de si mesmo. Expressar-se expressando o mundo, implica o comunicar-se.Alfabetização não é um jogo de palavras, é a consciência reflexiva da cultura, a reconstrução critica do mundo humano, é toda a pedagogia: aprender a ler é aprender a dizer sua palavra-ação.A teoria contrária, a anti-dialógica, se caracteriza nas elites dominadoras e essas classes têm interesse em dividir a sociedade entre eles e a 'massa popular', pois se não ocorrer tal divisão a classe oprimida pode despertar em um sentimento de união que é indispensável à ação libertadora; já a teoria da ação dialógica se caracteriza numa classe ocupada em revolucionar libertadoramente os métodos estabelecidos, nesta classe é possível encontrar os sujeitos que visam à transformação do mundo através da educação.
Vemos que na teoria anti-dialógica o sujeito domina o objeto, enquanto na teoria dialógica os sujeitos unidos e reunidos pronunciam o mundo.Enquanto na ação anti-dialógica a elite dominadora disfarça o mundo para dominá-lo de melhor forma a ação dialógica visa desvelar o mundo; este desvelamento do mundo e do próprio indivíduo enquanto parte dele possibilita, na prática cotidiana, à adesão das massas populares.Esta adesão se dá ao mesmo tempo que as massas populares confiam em si mesmas e em suas lideranças revolucionárias, pois percebem a dedicação e a verdadeira defesa da libertação dos homens. Para os opressores, o que vale é ter cada vez mais, à custa, inclusive do ter menos ou do nada ter dos oprimidos. Ser para eles, é ter, e ter como classe que tem. O sadismo aparece como uma das características da consciência opressora, na sua visão necrófila do mundo. Por isto é que seu amor é um amor as avessas – um amor a morte e não a vida.
Na teoria dialógica as lideranças revolucionárias se sentem obrigadas a manter a união dos oprimidos entre si em virtude da libertação; esta obrigação na prática é pó ponto fundamental.O contrário do que ocorre com a elite opressora que mantém sua unidade interna no intuito de fortalecer sua organização e poder e por isso importa sua separação das massas; para a liderança revolucionária deve haver unidade entre ela e as massas.A ação da unidade em virtude da libertação se contrapõe á vontade da classe dominante e por este motivo é tão difícil para as lideranças revolucionária manter esta união; o ponto inicial para manter a un
É na tentativa da liderança manter um testemunho de que busca a libertação, que é uma tarefa comum entre um povo, que se faz presente a teoria dialógica; e é este testemunho que, por sua vez, singelo e corajoso, exercita uma tarefa comum, a fim de evitar o risco dos direcionamentos anti-dialógicos; este testemunho é ainda uma das principais interpretações das características culturais e pedagógicas da revolução.Os homens humanizam-se, trabalhando juntos para fazer do mundo, sempre mais, a mediação de consciências – que se coexistenciam em liberdade. Um método pedagógico de conscientização alcança as últimas fronteiras do humano, e como o homem sempre se excede, o método também o acompanha, é a educação como prática de liberdade.A luta do ser menos pela humanização, pelo trabalho livre, pela desalienação, pela afirmação do homem como pessoa, somente tem sentido quando os oprimidos buscarem recuperar sua humanidade, não se sentem idealisticamente opressores, nem se tornam de fato, opressores dos opressores, mas restauradores da humanidade em ambos.
A ação cultural, no entender de Paulo Freire, se põe ou a serviço dos opressores, ou a serviço da libertação dos homens, de forma consciente ou inconsciente.Quando se põe a serviço dos opressores, na ação cultural não se encontra a possibilidade de seu caráter de ação induzida; quando se põe a serviço da libertação dos homens, a ação cultural se coloca em posição dialógica e se acha a condição para superar a indução. Segundo Paulo Freire a libertação é um processo doloroso, pois depende do próprio individuo expulsar ou não o opressor de dentro de si. O homem que nasce deste parto é um homem novo que só é viável na e pela superação da contradição opressores-oprimidos, que é a libertação de todos. A superação da contradição é o parto que traz ao mundo este homem novo, não o opressor, não mais o oprimido, mas homem libertando-se.Um dos problemas mais graves que se põem à libertação é que opressores e oprimidos precisam ganhar a consciência critica da opressão, na práxis desta busca. Através da práxis autêntica que, não sendo "blábláblá", nem ativismo, mas ação e reflexão, e possível fazê-lo. Práxis é a reflexão e ação dos homens sobre o mundo para transformá-lo, sem ela é impossível à superação da contradição opressor-oprimido.
Deste modo, se os indivíduos puderem se descobrir a partir de uma modalidade de ação cultural que problematize em si mesma a ação de confronto com o mundo, isto significa, num primeiro momento, que se descubram como tal e reconheçam sua identidade com toda a significação profunda que tem esta descoberta.Não levar em conta a visão do mundo que o povo tem é um dos erros que a liderança comete.No caso da liderança revolucionária, o conhecimento desta visão do mundo lhe é indispensável para sua ação, enquanto síntese cultural.O que a ação cultural dialógica pretende é o não desaparecimento da dialeticidade entre permanência e mudança, e a superação das contradições antagônicas de que resulte a libertação dos homens.
É como homens que os oprimidos tem que lutar e não como "coisas", na relação de opressão em que estão, que se encontram destruídos. A luta por esta reconstrução começa no auto conhecimento dos homens destituídos.Um educador humanista, revolucionário deve orientar-se no sentido da humanização de ambos. Do pensar autêntico e não no sentido de doação, da entrega do saber, sua ação deve estar fundida da crença nos homens. Isto tudo exige dele um companheiro dos educandos, em suas relações com estes.A educação como pratica de liberdade implica a negação do homem abstrato, isolado, solto, desligado do mundo, assim como também a negação do mundo como uma realidade ausente.
A prática problematizadora propõe ao homem sua situação como situação problema, propõe a ele a sua situação como incidência de seu ato cognoscente, através do qual será possível a superação da percepção mágica ou ingênua que dela tenham.O diálogo é também uma exigência existencial, e se ele é o encontro em que solidarizam o refletir e o agir de seus sujeitos endereçados ao mundo e ser transformado e humanizado, não pode reduzir-se a um ato de depositar idéias de um sujeito no outro, nem tampouco tornar-se simples troca de idéias a serem consumidas pelos permutantes.A auto-suficiência é incompatível com o diálogo. Homens que não tem humildade ou a perdem, não podem aproximar-se do povo. Se alguém não é capaz de sentir-se e saber-se tão homem quanto os outros, é que lhe falta ainda muito que caminhar para chegar ao lugar do encontro com eles.
A confiança vai fazendo os sujeitos dialógicos cada vez mais companheiros na pronuncia do mundo. Falar em democracia e silenciar o povo, falar em humanismo e negar os homens é uma mentira.Para o educador educando, dialógico, problematizador, o conteúdo programático da educação não é uma doação ou uma imposição mas devolução organizada, sistematizada e acrescentada ao povo daqueles elementos que este lhe entregar de forma desestruturada.A investigação da temática envolve investigação do próprio pensar. Pensar que não se dá fora dos homens, nem num homem só, nem no vazio, mas nos homens e entre os homens, e sempre referido a realidade.No processo da descodificação cabe ao investigador, auxiliar, não apenas ouvir os indivíduos, mas desafiá-lo cada vez mais problematizando, de um lado, a situação existencial codificada e de outro, as próprias respostas que vão dando aqueles no decorrer do diálogo.
A solidariedade nasce no testemunho que a liderança dá ao povo, no encontro humilde, amoroso e corajoso. Nem todos temos a coragem deste encontro e nos enrijecemos no desencontro, no qual transformamos os outros em puros objetos, e ao assim agirmos nos tornamos 'necrófilos', em lugar de 'biófilos', matamos a vida, em lugar de alimentarmos, em lugar de buscá-la, corremos dela.Manipulação é uma das características da teoria da ação anti-dialógica, é a manipulação das massas oprimidas. Através da manipulação vão tentando conformar as massas populares e seus objetivos.Crianças deformadas num ambiente de desamor, opressivo, frustradas na sua potência, se não conseguem na juventude, endereçar-se no sentido da rebelião autêntica, ou se acomodam numa demissão total do seu querer, alienados a autoridades e aos mitos, poderão vir a assumir formas de ação destrutiva.
O trabalho de Paulo Freire pode ser visto não apenas como um método de alfabetização, mas como um processo de conscientização, por levar em conta a natureza política da educação.ara ele o objetivo da educação deveria ser a libertação do oprimido, que lhe daria meios de transformar a realidade social e sua volta mediante "conscientização" (conhecimento crítico do mundo).A eficácia e a validade de seu método fundamentam-se no fato de partir da realidade do alfabetizando, do seu universo, do valor pragmático das coisas e fatos de sua vida cotidiana, de suas situações existenciais.
Obedece às normas metodológicas e lingüísticas, mas vai além delas, ao desafiar o homem ou a mulher que se alfabetizam a se apropriarem do código escrito com vistas a sua politização.Vale a pena ressaltar que apesar de os educadores e profissionais da área educacional sofrerem diferentes tipos pressões, degradação salarial e até mesmo queda no prestigio social, ainda depende deles a valorização, a qualidade e a excelência da educação.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 28 ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.
Fonte: http://www.webartigos.com/articles/40397/1/Resumo-de-Pedagogia-do-Oprimido/pagina1.html#ixzz14VR9Nxkt
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RESUMO PEDAGOGIA DA AUTONOMIA – PAULO FREIRE
Ensinar exige rigorosa metódica
Ensinar exige pesquisa ...
Ensinar exige respeito aos saberes dos educandos
Ensinar exige criticidade ..
Ensinar exige estética e ética ..
Ensinar exige corporeificação das palavras pelo exemplo ..
Ensinar exige risco, aceitação do novo e rejeição a qualquer
forma de discriminação ..
Ensinar exige reflexão crítica sobre a prática
Ensinar exige o reconhecimento e a assunção da identidade cultural ..
Ensinar não é transferir conhecimento ..
Ensinar exige consciência do inacabado ...
Ensinar exige o reconhecimento de ser condicionado ..
Ensinar exige respeito à autonomia do ser do educando ..
Ensinar exige bom senso ..
Ensinar exige humildade, tolerância e
Luta em defesa dos direitos dos educadores ..
Ensinar exige apreensão da realidade ..
Ensinar exige alegria e esperança ..
Ensinar exige a convicção de que a mudança é possível ..
Ensinar exige curiosidade ..
Ensinar é uma especificidade humana ..
Ensinar exige segurança,
Competência profissional e generosidade ..
Ensinar exige comprometimento ..
Ensinar exige compreender que a educação
é uma forma de intervenção no mundo ..
Ensinar exige liberdade a autoridade ..
Ensinar exige tomada consciente de decisões ..
Ensinar exige saber escutar ..
Ensinar exige reconhecer que a educação é ideológica..
Ensinar exige disponibilidade para o diálogo
Ensinar exige querer bem aos educandos ..
Não há docência sem discência
(...) O formando, desde o principio mesmo de sua experiência formadora, assumindo-se com sujeito também da produção do saber, se convença definitivamente de que ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produção ou a sua construção.
Se, na experiência de minha formação, que deve ser permanente, começo por aceitar que o formador é o sujeito em relação a quem me considero o objeto por ele formado, me considero como um paciente que recebe os conhecimentos-conteúdos-acumulados pelo sujeito que sabe e a são a mim transferidos. Nesta forma de compreender e de viver o processo formador, eu, objeto agora, terei a possibilidade, amanhã, de me tornar o falso sujeito da “formação” do futuro objeto de meu ato formador. É preciso que, pelo contrário, desde os começos do processo, vá ficando cada vez mais claro que, embora diferentes entre si, quem forma se forma e re-forma ao formar e quem é formado forma-se e forma ao ser formado. É neste sentido que ensinar não é transferir conhecimentos, conteúdos nem formar é ação pela qual um sujeito criador dá forma, estilo ou alma a um corpo indeciso e acomodado. Não há docência sem discência, as duas se explicam e seus sujeitos, apesar das diferenças que os conotam, não se reduzem à condição de objeto, um do outro. Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender. Quem ensina ensina alguma coisa a alguém.
Quando vivemos a autenticidade exigida pela prática de ensinar-aprender participamos de uma experiência total, diretiva, política, ideológica, gnosiológica, pedagógica, estética e ética, em que a boniteza deve achar-se de mãos dadas com a decência e com a serenidade.
(...) quanto mais criticamente se exerça a capacidade de aprender tanto mais se constrói e se desenvolve o que venho chamando “curiosidade epistemológica”, sem a qual não alcançamos o conhecimento cabal do objeto. É isto que nos leva, de um lado, à crítica e à recusa ao ensino “bancário”, de outro, a compreender que, apesar dele, o educando a ele submetido não está fadado a fenecer, em que pese o ensino “bancário”, que deforma a necessária criatividade do educando e do educador, o educando a ele sujeitado pode, não por causa do conteúdo cujo “conhecimento” lhe foi transferido, mas por causa do processo mesmo de aprender, dar, como se diz na linguagem popular, a volta por cima e superar o autoritarismo e o erro epistemológico do “bancarismo”.
O necessário é que, subordinado, embora à prática “bancária”, o educando mantenha vivo em si o gosto da rebeldia que, aguçando sua curiosidade e estimulando sua capacidade de arriscar-se, de aventurar-se, de certa forma o “imuniza” contra o poder apassivador do “bancarismo”. Neste caso, é a força criadora do aprender de que fazem parte a comparação, a repetição, a constatação, a dúvida rebelde, a curiosidade não facilmente satisfeita, que supera os efeitos negativos do falso ensinar.
Ensinar exige rigorosidade metódica
O educador democrático não pode negar-se o dever de, na sua prática docente, reforçar a capacidade crítica do educando, sua curiosidade, sua submissão. Uma de suas tarefas primordiais é trabalhar com os educandos a rigorosidade metódica com que devem se “aproximar” dos abjetos cognoscíveis.
(...)nas condições de verdadeira aprendizagem os educandos vão se transformando em reais sujeitos da construção e da reconstrução do saber ensinando, ao lado do educador, igualmente sujeito do processo. Só assim podemos falar realmente de saber ensinando, em que o objeto ensinado é apreendido na sua razão de ser e, portanto, aprendido pelos educandos.
Percebe-se, assim, a importância do papel do educador, o mérito da paz com que viva a certeza de que faz parte de sua tarefa docente não apenas ensinar os conteúdos mas também ensinar a pensar certo. Aí a impossibilidade de vir a tornar-se um professor crítico se, mecanicamente memorizador, é muito mais um repetidor cadenciado de frases e de idéias inertes do que um desafiador. O intelectual memorizador, que lê horas a fio, domesticando-se ao texto, temeroso de arriscar-se, fala de suas leituras quase como se estivesse recitando-as de memória - não percebe, quando realmente existe, nenhuma relação entre o que leu e o que vem ocorrendo no país, na sua cidade, no seu bairro. Repete o lido com precisão mas raramente ensaia algo pessoal. Fala bonito de dialética mas pensa mecanicistamente. Pensa errado. É como se os livros todos a cuja leitura dedica tempo parto nada devessem ter com realidade de seu mundo. A realidade com que eles têm que ver é a realidade idealizada de uma escola que vai virando cada vez mais um lado aí, desconectado do concreto.
Só, na verdade, quem pensa certo, mesmo que, às vezes, pensa errado, é quem pode
ensinar a pensar certo.
O professor que pensar certo deixa transparecer aos educandos que uma das bonitezas de nossa maneira de estar no mundo e com o mundo , como seres históricos, é a capacidade de, intervindo no mundo, conhecer o mundo. Mas, histórico como nós, o nosso conhecimento do mundo tem historicidade. Ao ser produzido, o conhecimento novo supera outro antes que foi novo e se fez velho e se “dispõe” a ser ultrapassado por outro amanhã. Daí que seja tão fundamental conhecer o conhecimento existente quanto saber que estamos abertos e aptos à produção do conhecimento ainda não existente. Ensinar, aprender e pesquisar lidam com esses dois momentos do ciclo gnosiológico: o em que se ensina e se aprende o conhecimento já existente e o em que se trabalha a produção do conhecimento ainda não existente. A “dodiscência” – docência-discência – e a pesquisa, indicotomizáveis, são assim práticas requeridas por estes momentos do ciclo gnosiológico.
Ensinar exige pesquisa
Não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino. Esses que-fazeres se encontram um no corpo do outro. Enquanto ensino continuo buscando, reprocurando. Ensino porque busco, porque indaguei, porque indago e me indago. Pesquiso para constatar, constatando, intervenho, intervindo, educo e me educo. Pesquiso para conhecer e o que ainda não conheço e comunicar ou anunciar a novidade.
Ensinar exige respeito aos saberes dos educandos
Porque não discutir com os alunos a realidade concreta a que se deva associar a disciplina cujo conteúdo se ensina, a realidade agressiva em que a violência é a constante e a convivência das pessoas é muito maior com a morte do que com a vida? Porque não estabelecer uma necessária “intimidade” entre os saberes curriculares fundamentais aos alunos e a experiência social que eles têm como indivíduos? Porque não discutir as implicações políticas e ideológicas de um tal descaso dos dominantes elas áreas pobres da cidade? A ética de classe embutida neste descaso? Porque, dirá um educador reacionariamente pragmático, a escola não tem nada que ver com isso. A escola não é partido. Ela tem que ensinar os conteúdos, transferí-los aos alunos. Aprendidos, estes operam por si mesmos.
Ensinar exige criticidade
A curiosidade como inquietação indagadora, como inclinação ao desvelamento de algo, como pergunta verbalizada ou não, como procura de esclarecimento, como sinal de atenção que sugere e alerta faz parte integrante do fenômeno vital. Não haveria criatividade sem a curiosidade que nos move e que nos põe pacientemente impacientes diante do mundo que não fizemos, acrescentando a ele algo que fazemos.
Ensinar exige estética e ética
A necessária promoção da ingenuidade a criticidade não pode ou não deve ser feita a distância de uma rigorosa formação ética ao lado sempre da estética. (...) Não é possível pensar os seres humanos longe, sequer, da ética, quanto mais fora dela. Estar longe ou pior, fora da ética, entre nós, mulheres e homens, é uma transgressão. (,,,)Se se respeita a natureza do ser humano, o ensino dos conteúdos não pode dar-se alheio à formação moral do educando. Educar é substantivamente formar.
Ensinar exige a corporeificação das palavras pelo exemplo
Quem pensa certo está cansado de saber que as palavras a que falta corporeidade do exemplo pouco ou quase nada valem. Pensar certo é fazer certo. (...)O clima de quem pensa certo é o de quem busca seriamente a segurança naargumentação, é o de quem, discordando do seu oponente não tem por que contra ele ou contra ela nutrir uma raiva desmedida, bem maior, as vezes, do que a razão mesma da discordância. (...) Faz parte do pensar certo o gosto da generosidade que, não negando à quem o tem o direito à raiva, a distingue da raivosidade irrefreada.
Ensinar exige risco, aceitação do novo e rejeição a qualquer forma de Discriminação
Faz parte igualmente do pensar certo a rejeição mais decidida qualquer forma de discriminação. A prática reconceituosa de raça, de gênero ofende a substantividade do ser humano e nega radicalmente a democracia.
(...)o penar certo a ser ensinado concomitantemente com o ensino dos conteúdos não é um pensar formalmente anterior ao e desgarrado do fazer certo. Neste sentido é que ensinar a pensar não é uma experiência em que ele – o pensar certo – é tomado em si mesmo e dele se faz e que se vive enquanto dele se fala com a força do testemunho. Pensar certo implica a existência de sujeitos que pensam mediados por objeto ou objetos sobre que incide o próprio pensar dos sujeitos. Pensar certo não é que – fazer de quem se isola, de quem se “aconchega” a se mesmo na solidão, mas um ato comunicante.
(...)A grande tarefa do sujeito que pensa certo não é transferir, depositar, oferecer, doar ao outro, tomado como paciente de seu pensar, a inteligibilidade das coisas, dos fatos, dos conceitos. A tarefa coerente do educador que pensa certo é, exercendo como ser humano a irrecusável prática de inteligir, desafiar o educando com quem se comunica e a quem comunica, produzir sua compreensão do que vem sendo comunicado. Não há inteligibilidade que não seja comunicação e intercomunicação e que não se funde na dialogicidade. O pensar certo por isso é dialógico e não polêmico.
Ensinar exige reflexão crítica sobre a prática
A prática docente crítica, implicante do pensar certo, envolve o movimento dinâmico, dialético, entre o fazer e o pensar sobre o fazer. (...) o pensar certo que supera o ingênuo tem que ser produzido pelo próprio aprendiz em comunhão com o professor formador.
Por isso é que, na formação permanente dos professores, o momento fundamental é o da reflexão crítica sobre a prática. É pensando criticamente a prática de hoje ou de ontem que se pode melhorar a próxima prática. O próprio discurso teórico, necessário à reflexão crítica, tem de ser tal modo concreto que quase se confunde com a prática. O seu “distanciamento” epistemológico da prática enquanto objeto de sua análise e maior comunicabilidade exercer em torno da superação da ingenuidade pela rigorosidade.
(...) Está errada a educação que não reconhece na justa raiva, na raiva que protesta contra as in justiças, contra a deslealdade, contra o desamor, contra a exploração e a violência um papel altamente formador.
Ensinar exige o reconhecimento e a assunção da identidade cultural
Uma das tarefas mais importantes da prática educativo-crítica é propiciar as condições em que os educandos em relação uns com os outros e todos com o professor ou a professora ensaiam a experiência profunda de assumir-se. Assumir-se como ser social e histórico, como ser pensante, comunicante, transformador, criador, realizador de sonhos, capaz de ter raiva porque capaz de amar. Assumir-se como sujeito porque capaz de reconhecer-se como objeto. A assunção de nós mesmos não significa a exclusão dos outros. É a “outredade” do “não eu”, ou do tu, que me faz assumir a radicalidade de meu eu.
Às vezes, mal se imagina o que pode passar a representar na vida de um aluno um simples gesto do professor. O que pode um gesto aparentemente insignificante valer como força formadora ou como contribuição à do educando por si mesmo. (...) O professor trouxera de casa os nossos trabalhos escolares e, chamando-nos um a um, devolvia-os com o ser ajuizamento. Em certo momento me chama e, olhando ou reolhando o meu texto, sem dizer palavra, balança e cabeça numa demonstração de respeito e de consideração. O gesto do professor valeu mais do que a própria nota dez que atribuiu à minha redação. O gesto do professor me trazia uma confiança ainda obviamente desconfiada de que era possível trabalhar e produzir.
É incrível que não imaginemos a significação do “discurso” formador que faz uma escola respeitada em seu espaço. A eloqüência do discurso “pronunciado” na e pela limpeza do chão, na boniteza das salas, na higiene dos sanitários, nas flores que adornam. Há uma pedagogicidade indiscutível na materialidade do espaço. (...)O que importa, na formação docente, não é a repetição mecânica do gesto, este ou aquele, mas a compreensão do valor dos sentimentos, das emoções, do desejo, da insegurança a ser superada pela segurança, do medo que, ao ser “educado”, vai gerando a coragem.
Ensinar não é transferir conhecimento
(...)ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção. Quando entro em uma sala de aula devo estar sendo um ser aberto a indagações, à curiosidade, às perguntas dos alunos, a suas inibições, um ser crítico e inquiridor, inquieto em face da tarefa que tenho – a ele ensinar e não a de transferir conhecimento.
É preciso insistir: este saber necessário ao professor – que ensinar não é transferir conhecimento – não apenas precisa ser apreendido por ele e pelos educandos nas suas razoes de ser – ontológica, política, ética, epistemológica, pedagógica, mas também precisa ser constantemente testemunhado, vivido.
O meu discurso sobre a Teoria deve ser o exemplo concreto, prático, da teoria. (...)Ao falar da construção do conhecimento, criticando a sua extensão, já devo estar envolvido nela, e nela, a construção, estar envolvendo os alunos.
O clima do pensar certo não tem nada que ver com o das formulas preestabelecidas, mas seria a negação do pensar certo se pretendêssemos forja-lo na atmosfera da licenciosidade ou do espontaneísmo. Sem rigorosidade metódica não há pensar certo.
Ensinar exige consciência do inacabamento
Como professor crítico, sou um “aventureiro” responsável, predisposto à mudança, à aceitação diferente. Nada do que experimentei em minha atividade docente deve necessariamente repetir-se. Repito, porém, como inevitável, a franquia de mim mesmo, radical, diante dos outros e do mundo. Minha franquia ante os outros e o mundo mesmo é a maneira radical como me experimento enquanto ser cultural, histórico, inacabado e consciente do inacabamento. (...)Quanto mais cultural é o ser, maior a sua infância, sua dependência de cuidados especais.
Só os seres que se tornam éticos podem romper com a ética. Não se sabe de tigres africanos que tenham jogado bombas altamente destruidoras em “cidades” de tigres asiáticos.
Ensinar exige o reconhecimento de ser condicionado
Gosto de ser gente porque, inacabado, sei que sou um ser condicionado mas, consciente do inacabamento, sei que posso ir mais além dele. Esta é a diferença profunda entre o ser condicionado e o ser determinado. A diferença entre o inacabado que não se sabe como tal e o inacabado que histórica e socialmente alcançou a possibilidade de saber-se inacabado.
(...)minha presença no mundo não é a de quem a ele se adapta mas a de quem nele se insere. É a posição de quem luta para não ser apenas objeto, mas sujeito também há história.
A consciência do mundo e a consciência de si inacabado necessariamente inscrevem o ser consciente de sua inconclusão num permanente movimento de busca. Na verdade, seria uma contradição se, inacabado e consciente do inacabamento, o ser humano não se inserisse em tal movimento. É neste sentido que, para mulheres e homens, estar no mundo necessariamente significa estar com o mundo e com os outros. Estar no mundo sem história, sem por ela ser feito, sem cultura, sem “tratar” sua própria presença no mundo, sem sonhar sem cantar, sem musicar, sem pintar, sem cuidar da terra, das águas, sem usar as mãos, sem esculpir, sem filosofar, sem pontos de vista sobre o mundo, sem fazer ciência, ou teologia, sem assombro em face do mistério, sem aprender, sem ensinar, sem idéias de formação, sem politizar não é possível.
É na inconclusão do ser, que se sabe como tal, que se funda a educação como processo permanente. Mulheres e homens se tornam educáveis na medida em que se reconheceram inacabados. Não foi educação que fez mulheres e homens educáveis, mas a consciência de sua de sua inconclusão é que gerou sua educabilidade.
Este é um saber fundante da nossa prática educativa, da formação docente, o da nossa inconclusão assumida. O ideal é que, na experiência educativa, educandos, educadores e educadoras, juntos, “convivam” de tal maneira com este como com outros saberes de que falarei que eles não virando sabedoria. Algo que não nos é estranho a educadores e educadoras. Quando saio de casa para trabalhar com os alunos, não tenho dúvida nenhuma de que, inacabados e conscientes do inacabamento, abertos à procura, curiosos, “programados, mas para aprender”, exercitaremos tanto mais e melhor a nossa
capacidade de aprender e de ensinar quanto mais sujeitos e não puros objetos do processo nos façam.
Ensinar exige respeito à autonomia
O professor que desrespeita a curiosidade do educando, o seu gosto estético, a sua inquietude, a sua linguagem, mais precisamente, a sua sintaxe e a sua prosódia; o professor que ironiza o aluno, que minimiza, que manda que “ele se ponha em seu lugar” ao mais tênue sinal de sua rebeldia legitima, tanto quanto o professor que se exige do cumprimento de seu dever de ensinar, de estar respeitosamente presente à experiência formadora do educando, transgride os princípios fundamentalmente éticos de nossa existência. (...)Saber que devo respeito à autonomia e à identidade do educando exige de mim uma prática em tudo coerente com este saber.
Ensinar exige bom senso
A vigilância do meu bom senso tem uma importância enorme na avaliação que, a todo instante, devo fazer de minha prática. Antes, por exemplo, de qualquer reflexão mais detida e rigorosa é o meu bom senso que me diz ser dão negativo, do ponto de vista de minha tarefa docente, o formalismo insensível que me faz recusar o trabalho de um aluno por perca de prazo, apesar das explicações convincentes do aluno, quanto o desrespeito pleno pelos princípios reguladores da entrega dos trabalhos. É o meu bom senso que me adverte de exercer a minha autoridade de professor na classe, tomando decisões, orientando atividades, estabelecendo tarefas, cobrando a produção individual e coletiva do grupo não é sinal de autoritarismo de minha parte. É a minha autoridade cumprindo o seu dever. Não resolvemos bem, ainda, entre nos, a tensão que a contradição autoridade-liberdade nos coloca e confundimos quase sempre autoridade com autoritarismo, licença com liberdade. (...)De nada serve, a não ser para irritar o educando e desmoralizar o discurso hipócrita do educador, falar em democracia e liberdade mais impor ao educando a vontade de arrogante do mestre.
O exercício do bom senso, com o qual só temos o que ganhar, se faz no corpo da curiosidade. Neste sentido, quanto mais pomos em prática de forma metódica a nossa capacidade de indagar, de comparar, de duvidar, de aferir, tanto mais eficazmente curiosos nos podemos tornar e mais crítico se pode fazer o nosso bom senso.
Ensinar exige humildade, tolerância e luta em defesa dos direitos dos educadores
É como profissionais idôneos – na competência que se organiza politicamente está talvez a maior força dos educadores – que eles e elas devem ver-se a si mesmos e a si mesmas. É nesse sentido que os órgãos de classe deveriam priorizar o empenho de formação permanente dos quadros do magistério como tarefa altamente política e repensar a eficácia das greves. A questão que se coloca, obviamente, não é parar de lutar, mas reconhecendo-se que a luta é uma categoria histórica, reinventar a forma também histórica de lutar.
Ensinar exige apreensão da realidade
Creio poder afirmar, na altura destas considerações, que toda prática educativa demanda a existência de sujeitos, um que, ensinando, aprende, outro que, aprendendo, ensina, daí o seu cunho gnosiológico; a existência de objetos, conteúdos a serem ensinados e aprendidos; envolve o uso de métodos, de técnicas, de materiais; implica, em função de seu caráter diretivo, objetivo, sonhos, utopias, ideais. Daí a sua politicidade, qualidade que tem a prática educativa de ser política, de não poder ser neutra.
Ensinar exige alegria e esperança
Há uma relação entre a alegria necessária à atividade educativa e a esperança. A esperança de professor e alunos juntos podemos aprender, ensinar, inquietar-nos, produzir e juntos igualmente resistir aos obstáculos à nossa alegria. Na verdade, do ponto de vista da natureza humana, a esperança não é algo que a ela se justaponha. A esperança faz parte da natureza humana. Seria uma contradição se, inacabado e consciente do inacabado, primeiro o ser humano não se inscrevesse ou não se achasse predisposto a participar de movimento constante de busca e, segundo, se buscasse sem esperança. A desesperança é a negação da esperança. A esperança é uma espécie de ímpeto natural possível e necessário, a desesperança é o aborto deste ímpeto. A esperança é um condimento indispensável à experiência histórica. Sem ela, não haveria História, mas puro determinismo. Só há História onde há tempo problematizado e não pré- dado. A inexorabilidade do futuro é a negação da história.
Tive recentemente em Olinda, numa manhã como os trópicos conhecem, entre chuvas e ensolarada, uma conversa, que diria exemplar, com um jovem educador popular que, a cada instante, a cada palavra, a cada reflexão, revelava a coerência com que vive sua opção democrática e popular. Caminhávamos, Danilson Pinto e eu, com alma aberta ao mundo, curiosos, receptivos, pelas trilhas de uma favela onde cedo se aprende que só a custo de muita teimosia se consegue tecer a vida com sua quase ausência – ou negação - , com carência, com ameaça, com desespero, com ofensa e dor. Enquanto andávamos pelas ruas daquele mundo maltratado e ofendido eu ia me lembrando de experiências de minha juventude em outras favelas de Olinda ou do Recife, dos meus diálogos com favelados e faveladas de alma rasgada. Tropeçando na dor humana, nós nos perguntávamos em torno de um sem número de problemas. Que fazer, enquanto educadores, trabalhando num contexto assim? Há mesmo o que fazer? Como fazer o que fazer? Que precisamos nós, os chamados educadores, saber para viabilizar até mesmo os nossos primeiros encontros com mulheres, homens e crianças cuja humanidade vem sendo negada e traída, cuja existência vem sendo esmagada? Paramos no meio de um pontilhão estreito que possibilita a travessia da favela para uma parte menos maltratada do bairro popular. Olhávamos de cima um braço de rio poluído, sem vida, cuja lama, e não água, empapa os mocambos nela quase mergulhados. “Mais além dos mocambos”, me disse Danilson, “há algo pior: um grande terreno onde se faz o depósito do lixo público. Os moradores de toda esta redondeza “pesquisam” no lixo o que comer. O que vestir, o que os mantenha vivos”. Foi desse horrendo aterro, que há dois anos, uma família retirou de lixo hospitalar pedaços de seio amputado com que preparou seu almoço domingueiro. A imprensa noticiou o fato que citei, horrorizado e pleno de justa raiva, no meu último livro À Sombra desta Mangueira. É possível que a notícia tenha provocado em pragmáticos neoliberais sua reação habitual e fatalista sempre em favor dos poderosos. “É triste, mas, que fazer? A realidade é mesmo esta.” A realidade, porém, não é inexoravelmente esta. Está sendo esta como poderia ser outra e é para que seja outra que precisamos, os progressistas, lutar. Eu me sentiria mais do que triste, desolado e sem achar sentido para minha presença no mundo, se fortes e indestrutíveis razões me convencessem de que a existência humana se dá no domínio da
determinação. Domínio em que dificilmente se poderia falar de opções, de decisão, de liberdade, de ética. “Que fazer? A realidade é assim mesmo”, seria o discurso universal. Discurso monótono, repetitivo, como a própria existência humana. Numa história assim determinada, as posições rebeldes não têm como tornar-se revolucionárias.
Ensinar exige a convicção de que a mudança é possível
Uma das questões centrais com que temos de lidar é a promoção de posturas rebeldes em posturas revolucionárias que nos engajam no processo radical de transformação do mundo. A rebeldia é ponto de partida indispensável, é deflagração da justa ira, mas não é suficiente. A rebeldia enquanto denúncia precisa se alongar até uma posição mais radical e crítica, a revolucionária, fundamentalmente anunciadora. A mudança do mundo implica a dialetização entre a denúncia da situação desumanizante e o anúncio de superação, no fundo, o nosso sonho.
É a partir deste saber fundamental: mudar é difícil mas é possível, que vamos programar nossa ação político – pedagógica, não importa se o projeto com o qual nos comprometemos é de alfabetização de adultos ou de crianças, se de ação sanitária, se de evangelização, se de formação de mão – de – obra técnica.
(...)não posso de maneira alguma, nas minhas relações políticos-pedagógicas com os grupos populares, desconsiderar seu saber de experiência feito. Sua explicação do mundo de que faz parte a compreensão de sua própria presença no mundo. E isso tudo vem explicitado ou sugerido ou escondido no que chamo “leitura do mundo” que precede sempre a “leitura da palavra”.
A alfabetização, por exemplo, numa área de miséria, só ganha sentido na dimensão humana se, com ela, se realiza uma espécie de psicanálise histórico-político-social de que vá resultando a extrojeção da culpa indevida. A isto corresponde a “expulsão” do opressor de “dentro” do oprimido, enquanto sombra invasora. Sombra que, expulsa pelo oprimido, precisa de ser substituída por sua autonomia e sua responsabilidade. Salientese contudo que, não obstante a relevância ética e política do esforço conscientizador que acabo de sublinhar, não se pode parar nele, deixando-se relegado para um plano secundário o ensino da escrita e da leitura da palavra. Não podemos, numa perspectiva democrática, transformar uma classe de alfabetização num espaço em que se proíbe toda reflexão em torno da razão de ser dos fatos nem tampouco num “comício libertador”.
Ensinar exige curiosidade
Se há uma prática exemplar como negação da experiência formadora é a que dificulta ou inibe a curiosidade do educando e, em conseqüência, a do educador. É que o educador que, entregue a procedimentos autoritários ou paternalistas que impedem ou dificultam o exercício da curiosidade do educando, termina por igualmente tolher sua própria curiosidade. (...)O bom clima pedagógicodemocrático é o em que o educando vai aprendendo à custa de sua prática mesma que sua curiosidade como sua liberdade deve estar sujeita a limites, mas em permanente exercício. Limites eticamente assumidos por ele. Minha curiosidade não tem o direito de invadir a privacidade do outro e expô-lo aos demais
A construção ou a produção do conhecimento do objeto implica o exercício da curiosidade, sua capacidade crítica de “tomar distância” do objeto, de observá-lo, de delimitá-lo, de cindi-lo, de “cercar” o objeto ou fazer sua aproximação metódica, sua capacidade de comparar, de perguntar.
A dialogicidade não nega a validade de momentos explicativos, narrativos em que o professor expõe ou fala do objeto. O fundamental é que o professor e alunos saibam que a postura deles, do professor e dos alunos, é dialógica, aberta, curiosa, indagadora e não apassivada, enquanto fala ou enquanto ouve. O que importa é que professor e alunos se assumam epistemologicamente curiosos.
Outro saber indispensável à prática educativo-crítica é o de como lidaremos com a relação autoridade-liberdade, sempre tensa e que gera disciplina como indisciplina. Resultando da harmonia ou do equilíbrio entre autoridade e liberdade, a disciplina implica necessariamente o respeito de uma pela outra, expresso na assunção que ambas fazem de limites que não podem ser transgredidos.
ENSINAR É UMA ESPECIFICIDADE HUMANA
Que possibilidade de expressar-se, de escrever, vem tendo a minha curiosidade? Creio que uma das qualidades essenciais que a autoridade docente democrática deve revelar em suas relações com as liberdades dos alunos é a segurança em si mesma. É a segurança que se expressa na firmeza com quem atua, com que decide, com que respeita as liberdades, com que discute suas próprias posições, com que aceita rever-se. Segura de si, a autoridade não necessita de, a cada instante, fazer o discurso sobre sua existência, sobre si mesma. Não precisa perguntar a ninguém, certa de sua legitimidade, se “sabe com quem está falando?” Segura de si, ela é por que tem autoridade, porque a exerce com indiscutível sabedoria.
Ensinar exige segurança, competência profissional e generosidade
A incompetência profissional desqualifica a autoridade do professor. Outra qualidade indispensável à autoridade em suas relações com as liberdade é a generosidade. Não há nada mais que inferiorize mais a tarefa formadora da autoridade do a mesquinhez com que se comporte.
A autoridade coerentemente democrática está convicta de que a disciplina verdadeira não existe na estagnação, no silêncio dos silenciados, mas no alvoroço dos inquietos, na dúvida que instiga, na esperança que desperta.
O educando que exercita sua liberdade ficará tão mais livre quanto mais eticamente vá assumindo a responsabilidade de suas ações. Decidir é romper e, para isso, preciso correr o risco.
Se recusa, de um lado, silenciar a liberdade dos educandos, rejeita, de outro, a sua supressão do processo de construção de boa disciplina. (...)O ensino dos conteúdos implica o testemunho ético do professor.
Outro saber que devo trazer comigo e que tem que ver com quase todos os de que tenho falado é o de que não é possível exercer a atividade do magistério como se nada ocorresse conosco. Como impossível seria sairmos na chuva expostos totalmente a ela, sem defesas, e não nos molhar. Não posso ser professor sem me por diante dos alunos, sem revelar com facilidade ou relutância minha maneira de ser, de pensar politicamente.
Se a minha opção é democrática, progressista, não posso ter uma prática reacionária, autoritária, elitista. Não posso discriminar o aluno em nome de nenhum motivo.
Precisamos aprender a compreender a significação de um silêncio, ou de um sorriso ou de uma retirada da sala. O tom menos cortês com que foi feita uma pergunta. Afinal, o espaço pedagógico é um texto para ser constantemente lido, interpretado, escrito e reescrito. Neste sentido, quanto mais solidariedade exista entre o educador e educandos no trato deste espaço, tanto mais possibilidades de aprendizagem democrática se abrem na escola.
Ensinar exige compreender que a educação é uma forma de intervenção no mundo.
Ao reconhecer que, precisamente porque nos tornamos seres capazes de observar, se comparar, de avaliar, de escolher, de decidir, de intervir, de romper, de optar, nos fizemos seres éticos e se abriu para nós a probabilidade de transgredir a ética, jamais poderia aceitar a transgressão como direito mas como uma possibilidade.
É importante que os alunos percebam o esforço que faz o professor ou a professora procurando sua coerência.
Ensinar exige liberdade e autoridade
A liberdade amadurece no confronto com outras liberdades, na defesa de seus direitos em face da autoridade dos pais, do professor, do estado. É claro que, nem sempre, a liberdade do adolescente faz a melhor decisão com relação a seu amanhã. É indispensável que os pais tomem parte das discussões com os filhos em torno desse amanhã. Não podem nem devem omitir-se mas precisam saber e assumir, que o futuro de seus filhos é de seus filhos e não seu. É preferível, para min, reforçar o direito que tem a liberdade de decidir, mesmo correndo o risco de não acertar, a seguir a decisão dos pais. É decidindo que se aprende a decidir. Não posso aprender a ser eu mesmo se não decido nunca, porque há sempre a sabedoria e a sensatez de meu pai e minha mãe a decidir por mim.
O que é preciso, fundamentalmente mesmo, é que o filho assuma eticamente, responsavelmente, sua decisão, fundante de sua autonomia. Ninguém é autônomo primeiro para depois decidir. A autonomia vai se constituindo na experiência de várias, inúmeras decisões, que vão sendo tomadas.
A gente vai amadurecendo todo dia, ou não. A autonomia, enquanto amadurecimento todo dia, ou não. A autonomia, enquanto amadurecimento do ser para si, é processo, é vir a ser. Não ocorre em data marcada. É neste sentido que uma pedagogia da autonomia tem de estar centrada em experiências estimuladoras da decisão e da responsabilidade, vale dizer, em experiência respeitosas da liberdade.
Ensinar exige tomada consciente de decisões
A educação não vira política por causa da decisão deste ou daquele educador. Ela é política.
O educador e a educadora críticos não podem pensar que, a partir do curso que coordenam ou do seminário que lideram, podem transformar o país. Mas podem demonstrar que é possível mudar. E isto reforça nele ou nela a importância de sua tarefa político-pedagógica.
Ensinar exige saber escutar
Se, na verdade, o sonho que nos anima é democrático e solidário, não é falando dos outros, de cima para baixo, sobretudo, como se fôssemos os portadores da verdade a ser transmitida aos demais, que aprendemos a escutar, mas é escutando que aprendemos a falar com eles. Somente quem escuta paciente e criticamente o outro, fala com ele, mesmo que, em certas condições , precise de falar a ele. O que jamais faz quem aprende a escutar para poder falar com é falar impositivamente. Até quando, necessariamente, fala contra posições ou concepções do outro, fala com ele como sujeito da escuta de sua fala crítica e não como objeto de seu discurso. O educador que escuta aprende a difícil lição de transformar o seu discurso, às vezes necessário, ao aluno, em uma fala com ele.
A importância do silêncio no espaço da comunicação é fundamental. De um lado, me proporciona que, ao escutar, como sujeito e não como objeto, a fala comunicante de alguém, procure entrar no movimento interno do seu pensamento, virando linguagem, de outro, torna possível a quem fala, realmente comprometido com comunicar e não fazer puros comunicados, escutar a indagação, a dúvida, a criação de quem escutou. Fora disso, fenece a comunicação.
Sou tão melhor professor, então, quanto mais eficazmente consiga provocar o educando no sentido de que prepare ou refine sua curiosidade, que deve trabalhar com minha ajuda, com vistas a que produza sua inteligência do objeto ou do conteúdo de que falo. Na verdade, meu papel como professor, ao ensinar o conteúdo a ou b, não é apenas o de me esforçar para, com clareza máxima, descrever a substantividade do conteúdo para que o aluno o fixe. Meu papel fundamental, ao falar com clareza sobre o objeto, é iniciar o aluno a fim de que ele, com os materiais que ofereço, produza a compreensão do objeto em lugar de recebe-la, na integra, de mim. Ele precisa de se apropriar da inteligência do conteúdo para que a verdadeira relação de comunicação entre mim, como professor, e ele, como aluno se estabeleça. É por isso, repito, que ensinar não é transferir conteúdo a ninguém, assim como aprender não é memorizar o perfil do conteúdo transferido no discurso vertical do professor. Ensinar e aprender tem que ver com o esforço metodicamente crítico do professor de desvelar a compreensão de algo e com o empenho igualmente crítico do aluno de ir entrando como sujeito em aprendizagem,, no processo de desvelamento que o professor ou professora deve deflagrar. Isso não tem nada que ver com a transferencia de conteúdo e fala da dificuldade mas, ao mesmo tempo, da boniteza da docência e da discência.
Escutar é obviamente algo que vai mais além da possibilidade auditiva de cada um. Escutar, no sentido aqui discutido, significa a disponibilidade permanente por parte do sujeito que escuta para a abertura à fala do outro, ao gesto do outro, às diferenças do outro. (...)é escutando bem que me preparo para melhor me colocar ou melhor me situar do ponto de vista das idéias. Como sujeito que se dá ao discurso do outro, sem preconceitos, o bom escutador fala e diz de sua posição com desenvoltura. Precisamente porque escuta, sua fala discordante, em sendo afirmativa, porque escuta, jamais é autoritária.
Sem bater fisicamente no educando o professor pode golpeá-lo, impor-lhe desgostos e prejudicá-lo no processo de sua aprendizagem. A resistência do professor, por exemplo, em respeitar a “ leitura de mundo” com que o educando chega á escola, obviamente condicionada por sua cultura de classe e revelada em sua linguagem , também de classe, se constitui em um obstáculo à sua experiência de conhecimento.
O desrespeito à leitura de mundo do educando revela o gosto elitista, portanto antidemocrático, do educador que, desta forma, não escutando o educando, com ele não fala. Nele deposita seus comunicados.
Ensinar exige reconhecer que a educação é ideológica.
Saber igualmente fundamental à prática educativa do professor ou da professora é o que diz respeito à força, às vezes maior do que pensamos. Da ideologia. É o que nos adverte de suas manhas, das armadilhas em que nos faz cair. É que a ideologia tem que ver diretamente com a ocultação da verdade dos fatos, com o uso da linguagem para penumbrar ou opacizar a realidade ao mesmo tempo em que nos torna "míopes".
A própria "miopia" que nos acomete dificulta a percepção mais clara, mais nítida da sombra. Mais séria ainda é a possibilidade que temos de docilmente aceitar que o que vemos e ouvimos é o que na verdade é, e não a verdade distorcida. A capacidade de penumbrar a realidade, de nos "miopizar", de nos ensurdecer que tem a ideologia faz, por exemplo, a muitos de nós, aceitar docilmente o discurso cinicamente fatalista neoliberal que proclama ser o desemprego no mundo uma desgraça do fim do século. Ou que os sonhos morreram e que o válido hoje é o "pragmatismo" pedagógico, é o treino técnico-científico do educando e não sua formação de que já não se fala. Formação que, incluindo a preparação técnico-científica, vai mais além dela.
Uma das eficácias de sua ideologia fatalista é convencer os prejudicados das economias submetidas de que a realidade é assim mesmo, de que não há nada a fazer mas a seguir a ordem natural dos fatos. Pois é como algo natural ou quase natural que a ideologia neoliberal se esforça por nos fazer entender a globalização e não como uma produção histórica.
O discurso da globalização que fala da ética esconde, porém, que a sua é a ética do mercado e não a ética universal do ser humano, pela qual devemos lutar bravamente se optarmos, na verdade, por um mundo de gente. O discurso da globalização astutamente oculta ou nela busca penumbrar a reedição intensificada ao máximo, mesmo que modificada, de medonha malvadez com que o capitalismo aparece na História. O discurso ideológico da globalização procura disfarçar que ela vem robustecendo a riqueza de uns poucos e verticalizando a pobreza e a miséria de milhões. O sistema capitalista alcança no neoliberalismo globalizante o máximo de eficácia de sua malvadez intrínseca.
É na minha disponibilidade permanente á vida a que me entrego de corpo inteiro, pensar crítico, emoção, curiosidade, desejo, que vou aprendendo a ser eu mesmo em minha relação com o contrário de mim. E quanto mais me dou à experiência de lidar sem medo, sem preconceito, com as diferenças, tanto melhor me conheço e construo meu perfil.
Ensinar exige disponibilidade para o diálogo.
Como professor não devo poupar oportunidade para testemunhar aos alunos a segurança com que me comporto ao discutir um tema, ao analisar um fato, ao expor minha posição em face de uma decisão governamental. Minha segurança não repousa na falsa suposição de que sei tudo, de que sou o "maior". Minha segurança se funda na convicção de que sei algo e de que ignoro algo que se junta a certeza de que posso saber melhor o que já sei e conhecer o que ainda não sei. Minha segurança se alicerça no saber confirmado pela própria existência de que, se minha inconclusão, de que sou consciente, atesta, de um lado, minha ignorância, me abre, de outro, o caminho para conhecer.
Me sinto seguro porque não há razão para me envergonhar por desconhecer algo.
O sujeito que se abre ao mundo e aos outros inaugura com seu gesto a relação dialógica em que se confirma como inquietação e curiosidade, como inconclusão em permanente movimento na História.
Certa vez, numa escola da rede municipal de São Paulo que realizava uma reunião de quatro dias com professores e professoras de dez escolas da área para planejar em comum suas atividades pedagógicas, visitei uma sala em que se expunham fotografias das redondezas da escola. Fotografias de ruas enlameadas, de ruas bem postas também. Fotografias de recantos feios que sugeriam tristeza e dificuldades. Fotografias de corpos andando com dificuldade, lentamente, alquebrados, de caras desfeitas, de olhar vago. Um pouco atrás de mim dois professores faziam comentários em torno do que lhes tocava mais perto. De repente, um deles afirmou: "Há dez anos ensino nesta escola. Jamais conheci nada de sua redondeza além das ruas que lhe dão acesso. Agora, ao ver esta exposição de fotografias que nos revelam um pouco de seu contexto, me convenço de quão precária deve ter sido a minha tarefa formadora durante todos estes anos. Como ensinar, como formar sem estar aberto ao contorno geográfico, social, dos educandos?"
A formação dos professores e das professoras devia insistir na constituição deste saber necessário e que me faz certo desta coisa óbvia, que é a importância inegável que tem sobre nós o contorno ecológico, social e econômico em que vivemos.
Não podemos nos pôr diante de um aparelho de televisão "entregues" ou "disponíveis" ao que vier. Quanto mais nos sentamos diante da televisão -há situações de exceção- como quem, em férias, se abre ao puro repouso e entretenimento, tanto mais risco corremos de tropeçar na compreensão de fatos e de acontecimentos. A postura crítica e desperta nos momentos necessários não pode faltar. (...)Talvez seja melhor contar de um a dez antes de fazer a afirmação categórica a que Wright Mills se refere: "É verdade, ouvi no noticiário das vinte horas."
Ensinar exige querer bem aos educandos
Não é certo, sobretudo do ponto de vista democrático, que serei tão melhor professor quanto mais severo, mais frio, mais distante e "cinzento" me ponha nas minhas relações com os alunos, no trato dos objetos cognoscíveis que devo ensinar. A afetividade não se acha excluída da cognoscibilidade. O que não posso obviamente permitir é que minha afetividade interfira no cumprimento ético de meu dever de professor no exercício de minha autoridade. Não posso condicionar a avaliação do trabalho escolar de um aluno ao maior ou menor bem querer que tenha por ele.
É digna de nota a capacidade que tem a experiência pedagógica para despertar, estimular e desenvolver em nós o gosto de querer bem e o gosto da alegria sem a qual a prática educativa perde o sentido. É esta força misteriosa, às vezes chamada vocação, que explica a quase devoção com que a grande maioria do magistério nele permanece, apesar da imoralidade dos salários. E não apenas permanece, mas cumpre, como pode,
seu dever. Amorosamente, acrescento.
A prática educativa é tudo isso: afetividade, alegria, capacidade científica, domínio técnico a serviço da mudança ou, lamentavelmente, da permanência do hoje. É exatamente esta permanência do hoje neoliberal que a ideologia contida no discurso da "morte da História" propõe.
Lido com gente e não com coisas. E porque lido com gente, não posso, por mais que, inclusive, me dê prazer entregar-me à reflexão teórica e crítica em torno da própria prática docente e discente, recusar a minha atenção dedicada e amorosa à problemática mais pessoal deste ou daquele aluno ou aluna. Desde que não prejudique o tempo normal da docência, não posso fechar-me a seu sofrimento ou à sua inquietação porque não sou terapeuta ou assistente social. Mas sou gente. O que não posso, por uma questão de ética e de respeito profissional, é pretender passar por terapeuta. Não posso negar a minha condição de gente de que se alonga, pela minha abertura humana, uma certa dimensão terápica.
Foi convencido disto que, desde jovem, sempre marchei de minha casa para o espaço pedagógico onde encontro os alunos, com quem comparto a prática educativa. Foi sempre como prática de gente que entendi o que fazer docente. De gente inacabada, de gente curiosa, inteligente, de gente que pode saber, que pode por isso ignorar, de gente que, não podendo passar sem ética se tornou contraditoriamente capaz de transgredí-la. Mas, se nunca idealizei a prática educativa, se em tempo algum a vi como algo que, pelo menos, parecesse com um que fazer de anjos, jamais foi fraca em mim a certeza de que vale a pena lutar contra os descaminhos que nos obstaculizam de ser mais. Naturalmente, o que de maneira permanente me ajudou a manter esta certeza foi a compreensão da História como possibilidade e não como determinismo, de que decorre necessariamente a importância do papel da subjetividade na História, a capacidade de comparar, de analisar, de avaliar, de decidir de romper e por isso tudo, a importância da ética e da política.
É esta percepção do homem e da mulher como seres "programados, mas para aprender" e, portanto, para ensinar, para conhecer, para intervir, que me faz entender a prática educativa como um exercício constante em favor da produção e do desenvolvimento da autonomia de educadores e educandos. Como prática estritamente humana jamais pude entender a educação como uma experiência fria, sem alma, em que os sentimentos e as emoções, os desejos, os sonhos devessem ser reprimidos por uma espécie de ditadura reacionalista. Nem tampouco jamais compreendi a prática educativa como uma experiência a que faltasse o rigor em que se gera a necessária disciplina intelectual.
Estou convencido, porém de que a rigosidade, a séria disciplina intelectual, o exercício da curiosidade epistemológica não me fazem necessariamente um ser malamado, arrogante, cheio de mim mesmo. Ou, em outras palavras, não é a minha arrogância intelectual a que fala de minha rigorosidade científica. Nem a arrogância é sinal de competência nem a competência é causa de arrogância. Não nego a competência , por outro lado, de certos arrogantes, mas lamento neles a ausência de simplicidade que, não diminuindo em nada seu saber, os faria gente melhor. Gente mais gente.
Resumo sucinto Pedagogia da Autonomia – Paulo Freire - Fonte: Net Saber Resumos
Ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produção ou a sua construção.
Não existe docência sem discente, por isto o discente é a única razão do docente estar ali, mas ensinar exige rigoroso metódico, não deixando escapar nenhum detalhe em seus discentes, e deve despertar no educando a curiosidade e capacidade crítica, ensinar exige pesquisa, não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino, busco o ensino porque perguntei e porque pergunto. Pesquiso para constatar, aquilo que já sei, educo e me educo. Pesquiso para conhecer e o que ainda não conheço e comunicar ou anunciar a novidade.
Ensinar exige respeito aos educandos, exige criticidade, deixar de ser ingênuo e passar a ser crítico, mas no sentido de ser curioso, seja em forma de pergunta ou não isto gera o fenômeno da aprendizagem, tudo isto acompanhado da ética e da estética porque ética e beleza andam sempre de mão dadas, ensinar exige dar vida às palavras pelo exemplo, o professor que não consegue traduzir aquilo que diz em exemplos práticos, de nada serve o que ele fala, saber quer dizer segurança no que diz. Ensinar exige risco, aceitação do novo e rejeição a qualquer forma de discriminação, exige o reconhecimento e a assunção da identidade cultural, exige consciência de que nunca esta acabado e sim que tudo recomeça, exige o reconhecimento de ser condicionado, exige respeito à autonomia, exige bom senso, exige humildade, tolerância e luta em defesa dos direitos dos educadores, exige entender a realidade e não ficar alheio a ela, exige a convicção de que a mudança é possível, exige segurança, competência profissional e generosidade, exige compreender que a educação é uma forma de intervenção no mundo, exige liberdade e autoridade, exige tomada consciente de decisões, e saber escutar que é muito importante e ser aberto ao diálogo, exige reconhecer que a educação é ideológica, exige querer bem aos educandos, e por fim exige alegria e esperança, nos homens que fazem as leis deste pais e na instituição família que apesar de tudo continua sendo um porto seguro para aqueles que não entendem e não aceitam as violências praticadas por quem tem o poder o conseqüentemente a força.
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